Eu tenho um sobrenome judeu. Muito judeu. O primeiro, que hoje em dia quase já não uso, mas ainda do que o segundo com o qual assino aqui. Durante a infância, estudei em uma escola onde as pessoas se chamavam Brisa, Primavera e Estrela, mas não Steinberg, Cohen, Friedman, ou qualquer outra coisa do tipo. Dancei na mesma escola de ballet por 10 anos, no programa da apresentação de final de ano meu nome foi escrito errado 10 vezes, de pelo menos 8 maneiras diferentes.

Eu tinha cabelos loiros, olhos verdes e cara de polaca. Meus avós falavam com sotaque, na minha casa não existiam coisas como Natal e Páscoa, e aos 11 anos eu era a única menina na sala a não me preparar para a primeira comunhão.

Não quero de forma alguma dizer que sofri com o fato de ser judia, ou de ser a única criança judia na escola até a sexta série. Não quero acusar de antissemitismo nenhum coleguinha, pai de coleguinha, ou dizer que a diferença imposta me foi insuportável. Mas eu era diferente. Estava, de alguma forma, do lado de fora.

Ser o único diferente em um grupo pode te revestir de uma curiosidade interessante, quase um mistério cool. Ou pode te transformar no receptáculo de anos, séculos, de um rancor violento. Como acontece com João, personagem de Diário da queda.

João é o único não judeu em uma escola judaica e o único pobre em uma escola de ricos. João é enterrado na areia, forçado a comer o sanduíche da mão de outro colega, espancado, humilhado e o protagonista se pergunta: por que não reage? Por que não se nega? E a pergunta o atormenta.

Por que usaram estrelas quando mandaram que usassem? Por que se fecharam em guetos quando mandaram que se fechassem? Por que entraram em trens quando mandaram que entrassem? Por que, exceto por um levante, não reagiram? São questões que eu ouvi algumas vezes ao longo da vida e que me perturbam tanto quanto ao protagonista de Laub.

Estar de fora, ou estar no grupo, é algo capaz de definir um indivíduo de forma inescapável.  Estar fora da nacionalidade, dos processos econômicos, da língua. Ser judeu em um mundo de góis. Ser gói em uma escola judaica. Alguém é capaz de agir diferente quando está dentro e há outro do lado de fora?

Poucas vezes a literatura me fez sentir tão fisicamente mal quando li, no final de um capítulo, seguida de um abismo de página em branco, as palavras “come areia, come areia, come areia, gói filho de uma puta.”

Se eu tivesse mais disposição, contaria quantas vezes a palavra “Auschwitz” aparece no livro. Porque não há substituição, eufemismo, alternância possível para ela. Poderia ser dito “o campo de concentração”, “o campo de trabalhos”, “o lugar onde meu avô esteve” (no caso, o avô do protagonista). Mas nenhuma dessas alternativas carrega a mesma sensação de peso que Auschwitz.

Como bem lembra o autor, para Adorno, não há poesia após Auschwitz. Após Auschwitz, deixa de ser óbvia a questão “como educaremos nossas crianças?”, porque após Auschwitz fomos obrigados a entrar em contato com toda a dimensão do que o ser humano é capaz. Auschwitz não é um lugar. Auschwitz é Birkenau, Dachau, Treblinka, Belzec, Janowska, Majdanek, Plaszow, Valvara, etc., etc., etc. Auschwitz esteve na Polônia, Alemanha, Holanda, Romênia, Estônia, Ucrânia, Sérvia, Croácia, etc., etc., etc. Auschwitz é, de certa forma, a bomba de Hiroshima. São os 70 milhões de seres humanos mortos entre 1939 e 1945.

Se Auschwitz fosse um lugar, por onde algumas pessoas, hoje quase todas mortas, passaram, então João não teria caído de costas em seu aniversário de 13 anos. Então o avô do protagonista e Primo Levi não teriam se matado. Eu não teria ouvido, em uma sessão no psicólogo, a pergunta: alguém da sua família esteve em Auschwitz?

Eu não falava sobre Auschwitz. Eu sequer falava sobre minha família. Eu falava sobre uma dificuldade qualquer, uma neurose comum, ou qualquer outro motivo que me faça sentar na poltrona em frente a um psicanalista toda semana. Mas sabendo meu sobrenome, sabendo de onde vinha minha família, ele se sentiu obrigado a perguntar: poderia Auschwitz ter algo a ver com o motivo que me levava até ali?

 

“Auschwitz e um suicídio e um desenho a lápis, só o fato de isso um dia ter parecido equivalente não deixa também de ser uma prova da inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares.”

 

Diário da queda me pareceu isso: um livro sobre a inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares. Mais do que isso: um livro sobre um traço de crueldade que torna inviável a natureza humana em todos os tempos e lugares.

Talvez o grande choque de Auschwitz, o grande motivo pelo qual não podemos parar de falar nisso; pelo qual, em 2011, Michel Laub escreveu um livro sobre isso; pelo qual em 2014 meu analista me perguntou se alguém da minha família esteve em Auschwitz; e pelo qual escrevo um texto sobre um livro que fala sobre Auschwitz; o grande motivo seja que seres humanos foram capazes disso.

Assim como seres humanos são capazes de, deliberadamente, deixar que o único menino pobre e não judeu da escola caia de costas em seu aniversário de treze anos.

A costura dos paralelos não é sutil, ela é exposta, gritante. Existe alguma dívida histórica, alguma permissão de vingança que autorize, torne menos detestáveis, os gritos de “come areia, gói filho de uma puta”? Existe alguma possibilidade de que seres humanos dentro do grupo tratem melhor aquele do lado de fora?

É possível estar do lado de fora e não sentir Auschwitz como sua herança pessoal? É real a resposta que o protagonista parece dar ao final do livro, a rejeição de Auschwitz e da queda de João como sua herança?

Diário da queda tornou-se um dos livros mais poderosos que li recentemente pelo paralelo cruel, pela inviabilidade da natureza humana tão exposta. Eu passei anos do lado de fora por ser judia, de um lado de fora que se alternou entre a curiosidade interessada e a incompreensão um tanto agressiva. Laub torce os lados de dentro e de fora e a memória, a memória que, estando do lado de fora, nos impregna. Seu livro é um dos retratos mais complexos, e fieis, das questões envoltas no judaísmo contemporâneo.