(Aviso prévio: tentei deixar todos os spoilers nas notas de rodapé.)

Obama não quer saber de spoilers da estreia da segunda temporada de House of Cards, diz uma notícia de há mais de duas semanas. Porque spoiler é falta de respeito.

Só me lembro de ter utilizado o termo a partir de quando passei a assistir ao seriado Lost. Sei que em pouco tempo ele passou a acompanhar comentários sobre literatura, cinema, música, esportes, religião.

Não é lá muito difícil viver uma vida sem spoilers. As pessoas se acostumaram a avisar, em vermelho ou em negrito, que “o comentário a seguir conterá spoilers”. Daí é só pular. Além disso, é até fácil esquecer muitas das coisas que nos levam a querer ler um livro ou um filme – basta ler uma resenha ou ver o trailer enquanto almoça ou corta as unhas do pé e parar de fazê-lo imediatamente após pensar “pô, acho que fiquei com vontade de ler/ver isso”. Batata. Não ler orelhas, quartas capas, encartes, sinopses da folhinha com a programação ajuda. Fazer ouvidos moucos aos comentários de desconhecidos, também. A tudo a gente se habitua.

A questão é: não sei se quero mais isso. Não sei se quero mais a sensação de que algo foi completamente arruinado só porque uma surpresa foi descoberta sem querer ou porque uma reviravolta me foi antecipada casualmente por um amigo. Tanta gente brigando feio por conta disso. Alguém já deve ter sido morto por um motivo besta desses – todo mundo parece andar à beira de um ataque de nervos.

Não é só uma questão de evitar conflitos. É saco cheio mesmo. Não sei se começou com a proximidade do fim de Breaking Bad 1 ou com os incentivos dos amigos fãs para que eu continuasse a ver Game of Thrones 2, não importando o quão maçante a série tivesse se tornado para mim – com exceção das minúsculas cenas com a Daenerys Targaryen. Mas quando vi a disseminação da frase “surpreenda-me” em perfis do Instagram, tweets e atualizações de status do Facebook é que comecei a ficar preocupado.

A surpresa como estilo de vida não é lá um panorama muito animador: um monte de gente se achando especial o suficiente para ser constantemente surpreendida pelo mundo (em suma, pelas outras pessoas) não me parece o melhor dos planos. Não basta pedir em namoro: são necessários fogos de artifício. Não basta amar e pedir em casamento: é preciso 150 figurantes que saibam direitinho a coreografia do flashmob. Não basta gostarem da mesma série: tem que calar a maldita boca antes de soltar um spoiler. Mesmo que sem querer.

Só que, deixa eu falar uma coisinha pra você: seu direito à ausência de spoilers termina onde começa um clássico, por exemplo. Não, ninguém é obrigado a ter lido (ou assistido a) todos os clássicos. Mas sou da teoria de que eles são à prova de spoilers. Como diz Calvino, em seu Por que ler os clássicos:

“5. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.”
“7. Os clássicos são aqueles livros que chegam até nós trazendo consigo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram (ou mais simplesmente na linguagem e nos costumes).”

Meio difícil uma capa de Dom Quixote que não tenha moinhos de vento3 ou alguém que fale de Madame Bovary 4, Hamlet 5, Grande Sertão: Veredas 6, Anna Kariênina 7, Crime e castigo 8 e Romeu e Julieta 9 sem falar do final ou de alguma reviravolta importante. O mesmo vale para filmes: quando finalmente vi Psicose 10 e Star Wars 11, dois entre tantos que têm uma reviravolta bombástica, já sabia o que ia acontecer. E a experiência proporcionada pelas obras não é reduzida por isso: não à toa, lembro que, enquanto assistia a estes dois filmes, esqueci que sabia o que ia acontecer… até que as coisas aconteceram e eu pensei “puxa, não é que aconteceu mesmo?”.

Mas não é só em relação aos clássicos que o suposto direito à ausência de spoilers é falho. Digo, como delimitar o que é spoiler ou não? Em alguns, é mais fácil identificar: o final de um livro policial – tal como Suicidas 12, de Raphael Montes –, por exemplo, não impede de prestarmos atenção em como o autor chegou à conclusão sem trapacear o leitor. Em outros, nem tanto: se eu contar o que acontece no final de Quiçá 13, de Luisa Geisler, não creio que estragaria a leitura de tudo que Arthur e Clarissa passaram juntos. Certos livros apresentam tantos níveis do que pode ser considerado spoiler, que fica difícil saber o que pode ser colocado numa sinopse e o que deve ser silenciado – basta pensar em um romance como A delicadeza 14, de David Foenkinos.

A grande questão é: o quanto podemos falar para convencer aquele amigo de que determinado livro pode lhe interessar? Revelar a razão de um livro ser “a cara” de alguém pode significar “estragar” alguma surpresa. Se não o fazemos, há sempre o risco do livro ser esquecido num canto – às vezes tão somente por conta da capa, não importando o quanto afirmemos que a capa não dá conta de dizer tudo que aquele romance é. Vide Garota Exemplar15, de Gillian Flynn: tem quem ache que é uma história de terror.

É isso e vice-versa. Não falo apenas sobre a preocupação de como falar de um livro para as outras pessoas, mas também de como aprendi a parar de me preocupar e a amar os spoilers. Primeiro, por conta da agonia que me dá ao ver alguém que passou a considerar tudo como spoilers tentando comentar sobre algo de que realmente gosta, sem pôr um rótulo e sem estragar minha “experiência” – mesmo que eu admita não ter planos de ler o livro ou ver o filme tão cedo. A busca pelas palavras certas durante pausas cada vez mais longas me faz pensar em alguém escrevendo uma redação, não conversando num café ou no meio da rua.

Além disso, um bom spoiler te dá uma baita vontade de ler (ou ver) o quanto antes determinada obra. Percebi isso enquanto tomava um café com V., que me falou sobre um romance lido até a metade em japonês: Kitchen, de Banana Yoshimoto. Quando ele me disse o motivo para ter meio que parado a leitura… era um senhor spoiler16! Vocês não imaginariam a minha rapidez em descobrir o livro em uma biblioteca e lê-lo.

Quanto mais penso, mais motivos tenho para acrescentar spoilers no meu cardápio. Porque, usados por quem você gosta e quer ouvir, são fonte de interesse – o que não poderia ser mais distinto de falta de respeito. E porque se algum amigo tivesse tido coragem de citar um bom spoiler sobre House of Cards, talvez surgisse um mínimo de interesse em finalmente ver essa “obra-prima produzida pelo Netflix”. Por enquanto, não rolou nem vontadinha.

E dane-se o Obama.

* * *

Três spoilers:

* Uma camiseta para quem adora spoilers.
* Um site que conta como os filmes acabam.
* Uma lista (entre tantas) com os dez melhores finais de livros.

  1. Walter White, aquele chato, morre. Não sei bem se valeu a pena correr para ver em maratona todas as temporadas o quanto antes, só para que não me estragassem essa surpresa.
  2. Muito melhor ler o resumo da enciclopédia online sobre a saga. George M. Martin cria personagens supostamente cativantes e os mata. E o povo sofre como se ele houvesse inventado isso. Grande coisa o Casamento Vermelho – trancam e matam todo mundo no recinto. Ygritte morre, e daí?
  3. Ainda que nem todo mundo saiba de cara que ele vai lutar com eles, afirmando serem gigantes.
  4. Desiludida, a protagonista se mata com arsênico.
  5. Fortimbrás entra em cena e encontra todo mundo morto, menos Horácio, encarregado de contar como se deu toda aquela loucura. Para alguns, será difícil se importar com o resto dos personagens depois do suicídio de Ofélia: “se ela morreu, que morram os outros também”.
  6. Diadorim é uma mulher.
  7. Desiludida, ela se joga sob os trilhos de um trem.
  8. Sim, ele vai matar a velha (e a irmã desta, o que não era sua intenção inicial), mas não vai conseguir manter o bico calado. A consciência pesa e ele fica paranoico.
  9. Ele se envenena porque não sabe que ela só aparenta estar morta; ela acorda logo depois, vê o estrago e apunhala o próprio coração.
  10. Norman Bates têm dupla personalidade: sua mãe verdadeira está morta e ele “era” ela quando esfaqueia aquela loira no chuveiro.
  11. Darth Vader é o pai de Luke Skywalker.
  12. Como eu suspeitava, nem todos se mataram naquele porão: o escritor armou para ser o único sobrevivente de tudo, arranjou um corpo para pôr em seu lugar, fugiu e continua mudando de nome no exterior. O mais recente deles (talvez definitivo)? Raphael Montes. Sempre desconfie do narrador. E do escritor.
  13. Arthur é filho de Augusto, pai de Clarissa, com a cunhada, irmã de sua esposa. O que torna a cena – lá pelo meio do livro e imperceptível para algumas pessoas – da Clarissa vendo o pai transando com o “primo” algo incômoda. Meio Nelson Rodrigues e tal.
  14. O spoiler é dizer que Natalie se casa, sim, como aquele rapaz maravilhoso? Ou falar que ele é atropelado enquanto corria e morre? Ou contar que ela não só não fica com o chefe bonitão, como assegura-lhe que, se voltar a amar, certamente não será a ele? Ou revelar que, sim, ela provavelmente vai querer continuar com aquele sueco esquisitão?
  15. Eu gostaria de ter comentado mais sobre o livro, na resenha em que tentei fugir de todos os spoilers: a visão de Amy a respeito do mercado editorial e do mundinho jornalístico em geral; a sordidez do contraste da caçada de pistas no aniversário de casamento (e a redescoberta, por parte de Nick, dos bons momentos juntos passados com a esposa) com a outra interpretação que poderia ser feita dos mesmos recadinhos (“veja só, babaca, como vou acabar com a sua vida”); a relação entre o protagonista e sua irmã; os momentos em que desconfiei que o célebre advogado de Nick fazia parte da conspiração de Amy.
  16. Eriko, mãe transexual de Yuichi e cuidadora da órfã Mikage, é assassinada por um stalker.