Muito antes de publicar seu primeiro livro de ficção, o jornalista e, agora, também escritor, Rogério Pereira, já era um nome conhecido e respeitado no meio literário. Fundou em 2000 o Rascunho, um dos nossos jornais mais importantes e o único especializado em literatura no Brasil.

Diretor da Biblioteca Pública do Estado do Paraná e figura importante na cultura literária brasileira, o gaúcho do interior de Santa Catarina, veio de origem humilde. Filho de pais semianalfabetos, o nosso Dom Quixote brasileiro viu sua vida ser transformada ao descobrir nos livros a possibilidade de um futuro melhor, que o tirasse da situação economicamente desfavorável em que se encontrava.

De motoboy do jornal Gazeta Mercantil, acabou tornando-se jornalista. Chegou a ser chefe de redação do jornal Gazeta do Povo, e foi parar na Espanha, onde fez um mestrado em Literatura. Porém, o grande marco em sua carreira, sem dúvida nenhuma, foi a idealização de seu pequeno-notável projeto, que elenca grandes escritores, jornalistas e críticos literários, chancelando de forma substancial o que grande parte da imprensa tem deixado a desejar no que diz respeito ao conteúdo dos cadernos culturais.

Após se apresentar também como cronista em publicações no site Vida Breve, chegou a vez de Rogério Pereira lançar-se na ficção com a publicação de Na escuridão, amanhã (mencionado pelo jornalista que aqui escreve na lista das melhores leituras de 2013 do Posfácio), um projeto literário de mais de uma década, que chegou finalmente às livrarias no final do último ano, editado pela Cosac Naify.


Como surgiu a espinha dorsal de Na escuridão, amanhã? E quando essa inquietação foi parar definitivamente no papel?

Levei dez anos escrevendo Na escuridão, amanhã. Até a publicação, são quase 14 anos. É claro que não fiquei o tempo todo debruçado sobre o livro. O longo tempo de gestação significa excessivo rigor, desmedida autocrítica e certa incapacidade de encontrar o ritmo adequado a uma história fragmentada sobre retirantes. A gênese do livro é um tanto inusitada. Numa conversa com o escritor Luiz Ruffato, ele me disse: “Estes teus textos formam um conjunto muito interessante”. Ele se referia a narrativas esparsas que eu publicava no Rascunho. De tanto ele me “pressionar”, resolvi encarar a aventura de escrever um romance. Aí, levei mais cerca de três anos retrabalhando os textos publicados e escrevendo novas partes, para amarrar tudo numa breve narrativa. Ao final consegui parir (não sem muita dor) este magricelo Na escuridão, amanhã.

Seu romance fala basicamente da transição de uma família interiorana que se muda para a cidade grande, em busca de uma vida melhor, embora a história das duas personagens, no caso, dois irmãos, envolva uma extensa gama de experiências, como a descoberta da sexualidade, a perda da inocência, os conflitos com a religião, e a cultura urbana (o caos, as músicas e a tecnologia) tão distinta da rural. Ao mesmo tempo, trata sobre sentimentos de dor e revolta ligados à austera figura patriarcal. Sabemos que o escritor veio de uma origem humilde, com pais semianalfabetos que saíram do interior e foram parar na cidade grande pelos mesmos motivos de suas personagens, ou seja, por uma vida melhor. Até que ponto a sua arte retrabalhou sua memória afetiva, se é que seu passado possa estar interligado nas raízes existenciais de suas personagens? Houve algum tipo de processo catártico em sua ficção?

Escrevi Na escuridão, amanhã para matar meu pai. Como ele não o leu, fracassei. Ele segue ali, nas esquinas, me ligando, me visitando. A literatura não é a melhor arma para se matar um pai. Da próxima vez, vou apelar para uma faca bem afiada. Ou um revólver de calibre potente. Enquanto não tomo coragem, sigo escrevendo sobre o meu pai, que não é meu pai, que é um personagem que inventei, que alguns acham que é meu pai. Meu pai se chama José. E deveria ser o pai de Jesus, o da Bíblia. Mas acabou sendo o pai dos diabinhos que nasceram sobre a maldição de uma avó. Maldição de avó não pega. Então, o que nos resta, se nem ao menos uma maldição nos é deixada como herança? Nos resta a ficção, a melhor forma de entender a realidade — esta coisa sem qualquer sentido. Se há traços biográficos em Na escuridão, amanhã? Minha vida está no livro. Mas não é um romance autobiográfico. Parto de alguns fantasmas que me acompanham desde que minha família abandonou a roça em direção a Curitiba. Todos estes fantasmas rondam o livro. É a história de uma família e seus dramas, seus pecados, seus medos, suas desgraças. Ou seja, uma família como outra qualquer. Há um pai tirano, uma mãe submissa e filhos desnorteados. Há pontos de aproximação com a minha história familiar. Mas ao final, tudo se afasta. Nada se parece com a minha família. Nada se parece com o que vivi. O que sobra é um livro, uma ficção, um romance. Ou seja, tudo é verdade, tudo é mentira.

Queria saber se durante esse longo processo escrevendo o livro você teve, em algum momento, certo receio ou insegurança, por conta de ser editor de um jornal que ao longo dos anos tornou-se um dos mais influentes veículos sobre literatura no Brasil, e que já protagonizou casos polêmicos envolvendo críticas a obras de alguns intelectuais, que devem ter lhe provocado certo mal-estar ou até inimizades no meio literário.

O medo é meu escudo. Ando sempre armado. Carrego uma faca comigo, mesmo quando vou ao jardim de infância buscar meu filho. Já esfaqueei um porco. Ele agonizou e morreu. Fiz a experiência num animal. Um laboratório, digamos. Sei como é o grito de um porco morrendo. Já é alguma coisa. O revólver, só carrego quando participo de eventos literários. Funciona melhor à distância. Nestes anos todos que me debrucei sobre os manuscritos de Na escuridão, amanhã, sempre com a adaga sobre a mesa, pensei em desistir. Foi um inferno: a história que eu imaginava tomou outros rumos, ganhou vida própria, me colocou contra a parede, voltou ao caminho original, desembestou outra vez. Ao final consegui parir (não sem muita dor) este magricelo Na escuridão, amanhã. Se tive insegurança ou receio? Todas as inseguranças e receios que acompanham um homem medroso, daltônico, magro, acrofóbico, esfomeado e etc. Talvez a resposta seja sim.

Foi difícil trabalhar a estética do livro usando essas duas vozes narrativas que se interligam para tratar os temas pungentes do livro, que vão montando de forma fragmentada a história dessa decadente família? Houve muitas versões de Na escuridão, amanhã?

Foi o diabo vestido de Prada a me esperar na porta do baile. Mas chegou um momento, quando já pensava em desistir, que encontrei uma maneira de entrelaçar as duas vozes narrativas. Aí, o livro andou de maneira satisfatória. Ganhou corpo e parecia que eu conseguiria terminá-lo. Tomei fôlego, mergulhei e consegui sair do outro lado da piscina de meio metro. Houve muitas versões. Estão todas amontoadas num canto do meu escritório. Todas são a prova real, inequívoca, do meu fracasso.

Como editor do Rascunho e conferindo de perto a produção literária nacional nos últimos anos, qual a sua opinião quanto ao que se tem produzido atualmente em termos de literatura e sobre o mercado de livros no Brasil?

Prefiro não responder. Mas vamos lá. Não tenho nada a perder. Minha casa é financiada e se alguém me matar, o financiamento será quitado automaticamente. Tenho seguro de vida. O mercado é um monstro armado de best sellers nas patas bífidas. E nada mais digo. A produção literária brasileira me parece hoje espantosa. Em todos os sentidos. Temos uma quantidade imensa de autores. Uma imensidão de portas de entrada para novos autores, principalmente nos meios digitais. E temos, com certeza, muitos autores de qualidade. Poderia citar pelo menos 20 escritores brasileiros cuja obra muito me agrada. Por outro lado, temos o glamour da escrita. Me parece que ser escritor é algo bacana, bonitinho, meio fofo, meio rococó. Não sei explicar. A impressão é de que muita gente não é escritor, nem gostaria de ser escritor, mas acha bacana ser escritor. Aí, vira escritor. Então, estamos rodeados de escritores que não são escritores. São escritores-fetiche. Ou coisa parecida. Escritores-transformistas. Coisas bem estranhas. Escritores que não leem. Escritores que só escrevem. Escritores que escrevem o tempo todo. Escritores de 30 anos com 30 livros publicados. Acho isso muito estranho. Mas há algum problema nisso? Claro que não. Estes escritores que não são escritores são como aqueles palhaços que animam o público entre os espetáculos no circo. A gente até os acha engraçados. Mas o que nos marca mesmo é quando o trapezista erra o salto e morre estendido no chão poeirento. O trapezista morto é o escritor de verdade. Acho que não disse nada de novo. Normalmente, não digo nada interessante. É um defeito que me persegue há 41 anos.

Escrever crônicas é um bom exercício para se escrever ficção ou são coisas completamente diferentes? Pergunto isso pelos textos que você publicava no site Vida Breve (que deu uma pausa por tempo indeterminado). Aliás, queria que você falasse sobre o site, que também recebe sua assinatura como coeditor. Ele vai voltar ao ar?

O Vida Breve vai renascer feito um defunto feliz, a saltar as valetas de Curitiba. Logo, estará no ar novamente. Acho que em abril. Será um novo site, com um layout renovado. A vida é breve, mas não precisa ser feia. Escrever crônica, bilhetes para a diarista e memorandos são exercícios que beiram a insanidade. Fico sempre na dúvida em relação à palavra certa, ao fim da frase, à vírgula, ao silêncio. Se você se dedica a escrever de verdade, todo texto é um bom exercício para se escrever. Escrever crônicas semanais é, para mim, a salvação. Utilizo quase tudo na minha ficção. O meu próximo romance (previsto para 2016) está quase todo no Vida Breve. O problema é que só eu sei onde. Escrevo crônicas pensando na minha ficção. Sou um grande mentiroso.

Sei que antes da carreira jornalística, você trabalhou por algum tempo como office-boy da Gazeta Mercantil, até estudar Comunicação e ingressar para o jornalismo, tendo sido chefe de redação na Gazeta do Povo, até idealizar o Rascunho. Como se deu esse processo?

Foi assim: nasci na roça. De parto normal. Sempre penso no que senti quando rocei as coxas quentes da minha mãe com esta minha cabeça imensa e cheia de bobagens. Minha mãe contava (encontrei-a morta na cama no ano passado) que levei três dias para nascer. É óbvio: as entranhas de qualquer mãe é melhor do que este lado do mundo. Não queria sair de lá. Mas já que saí, resolvi fazer algo de útil para este instante entre aquele primeiro berro ao lado do milharal e o caixão de bracatinga que me espera em muito breve. Trabalho desde que passei do estado rastejante para o estado vertical. Quando as pernas aguentaram mais de dois passos, lá fomos nós para a lida. Não era ruim. Era normal entre nós. Comecei vendendo flores na rua, depois em frente aos cemitérios, em seguida nas belas praças de Curitiba. Ou seja, aos poucos evoluí. Depois, trabalhei em fábrica de móveis e dentais. Aos 14 anos, entrei na Gazeta Mercantil. Descobri que a palavra escrita fazia algum sentido. Homens (alguns até sérios) sentavam em máquinas de escrever e, incrivelmente, escreviam. E ganhavam a vida escrevendo em pedaços de papel. Muito melhor que vender flores, carregar cadeiras, cortar lenha, assentar tijolos e outras maravilhas do mundo laboral. Então, resolvi copiar aqueles homens: comecei a escrever. Estou por aqui escrevendo até hoje. Só ainda não sei se não deveria ter insistido um pouco mais com as cadeiras.

Você se descobriu um ficcionista propriamente dito como editor do Rascunho ou por uma inquietação criativa que já vinha do passado?

Acho que me descobri ficcionista quando minha mãe me largou sobre um formigueiro. Morávamos na roça, no meio do mato. Eu tinha de três para quatro anos. Ficava em casa sob os cuidados do meu irmão, muito mais velho que eu. Ele tinha seis anos. Mas eu chorava muito. Não queria ficar em casa. Queria ir pra roça com minha mãe. Então, às vezes, ela me colocava num balaio de milho, jogava-o nas costas e subia a encosta. Um dia, ela me colocou na sombra para eu brincar e foi cuidar do que realmente interessava: cultivar a terra. Eu continuei chorando por muito tempo. Cansada dos meus berros esganiçados, de cachorro faminto, ela voltou para me atender. Por descuido, tinha me colocado sobre um formigueiro. As formigas estavam se deliciando com a minha carne ainda tenra, macia e gostosa. Minha mãe sempre me contou esta história. Tenho certeza de que, ao ser devorado por formigas, decidi ser escritor. Ou seja, a culpa é da minha mãe e das formigas. De resto, estou há 41 anos tentando escrever algo que faça algum sentido entre ser esquecido num formigueiro e encontrar minha mãe morta (dura e fria) sobre a cama no dia 15 de julho de 2013. Nem a mais valente formiga se atreveria a morder aquele corpo cadavérico.

Em uma entrevista concedida ao jornalista Julio Daio Borges, no site Digestivo Cultural, publicada em 4 de setembro de 2006, você declarou: “Parece estranho dizer isso, mas não gosto muito do mundo literário. Evito ao máximo me encontrar com os escritores, estreitar laços de amizade. Minha vida social está muito distante da literatura. Nos fins de semana, jogo futebol amador com muitas pessoas que nunca abriram um livro.” Gostaria de saber se a sua opinião e os seus hábitos continuam os mesmos ou algo mudou de lá pra cá?

Se pudesse ficava em casa o máximo de tempo possível, cuidando das coisas que realmente interessam: ler, escrever e comer alface. O sexo fica entre uma coisa e outra. Mas a vida não deixa. A vida é algo monstruoso que nos leva a cantos indesejáveis, muito indesejáveis. Ao contrário de 2006, hoje circulo muito mais pelos meios literários, encontro vários escritores. Faz parte da vida que escolhi até o dia dos malditos crisântemos ao lado do caixão. Mas, confesso, fujo ao máximo dos insalubres jantares, regados a muita conversa sobre literatura. Acho uma chatice sem fim. Aquele bando de autores falando bem de si e mal dos outros. É masturbação misturada com sadomasoquismo. Tenho, sim, bons amigos escritores. Talvez quatro. Mas, estranhamente, sempre conversamos sobre futebol, mulher pelada e cerveja. Aí, parece que estou conversando com o pedreiro e o mecânico que jogam futebol comigo no domingo pela manhã. Às vezes, falamos um pouco de literatura. Até porque os médicos garantem que se masturbar de vez em quando faz bem à saúde.

Sobre a crise do jornalismo cultural brasileiro no veículo impresso: a internet seria um caminho para a sua estabilização?

Sabe Deus. Ou nem Ele. Que o jornalismo impresso está em crise, até o meu tio analfabeto sabe. A internet é o caminho? Parece ser. Não sei bem. Acho que sou um dinossauro: uso a internet para conferir a programação do cinema e para responder e-mail. E para ver se meu time ganhou ou perdeu. Meu DNA de traça não se adapta de jeito nenhum ao mundo digital. Tenho 41 anos, mas devo ter idade mental de um velhinho de 85 anos. Como pretendo morrer aos 85 anos, acho que já estou morto. Só ainda não me avisaram.

Qual foi a sensação após terminar seu primeiro romance? De dever cumprido ou “bem, foi mais ou menos isso o que eu queria dizer”? Aliás, você chegou a reler o seu livro depois das provas, com ele já publicado?

Foram várias sensações. A de arrependimento talvez tenha sido a mais forte no início. Depois, a coisa acalmou um pouco. Aí, veio a sensação do “tanto faz”. Depois, alguma euforia. Cheguei a pensar “sou um gênio”. Em seguida, o fundo do poço: “sou uma besta”. Quando a coisa estabilizou, quando o avião parou de balançar, a realidade: “parabéns, você conseguiu escrever o livro possível”. Agora, vá jogar futebol e comer alface. Li alguns trechos do livro na bela edição da Cosac Naify. Às vezes, gosto. Às vezes, odeio. Sou um autor bipolar. Acaba de sair a primeira reimpressão do livro. Pensei em mudar tudo, reescrever. Mas desisti. E fui comer mais algumas folhas de alface.

Sei que você tem feito um belo trabalho como diretor da Biblioteca Pública do Estado do Paraná. Gostaria de saber quais seriam as alternativas para que uma biblioteca de fato ainda corrobore a formação de novos leitores em nosso país? Pergunto isso por conta desta nova geração completamente voltada à internet e às plataformas digitais.

Formar leitores não é obrigação das bibliotecas. Praticamente nenhuma biblioteca no Brasil está capacitada a formar leitores. Formação de leitores, no Brasil, ocorre na escola. Ou, melhor, não ocorre na escola. Como formar um leitor que chega à biblioteca sem saber ler o básico? A biblioteca é o meio do caminho, uma ponte, uma oportunidade. Mas a formação dos leitores deveria se dar em casa e na escola. A biblioteca apenas reforçaria esta formação. É óbvio que uma biblioteca bem equipada, com bons livros, sempre será fundamental na vida de qualquer leitor. Muita gente se forma leitor frequentando bibliotecas. E há bibliotecas preparadas para formar leitores. No entanto, ressalto, a formação de leitores vem da escola e de casa. O que, obviamente, não acontece no Brasil. Mas esta discussão é praticamente impossível numa simples resposta. Precisaríamos da eternidade e de diversos formigueiros.

Uma frase de um escritor ou um trecho de algum livro a que, particularmente, você tenha um grande apreço para fechar esta grande entrevista.

“A vida é isso, um fiapo de luz que termina na noite.”
– Louis-Ferdinand Céline, Viagem ao fim da noite