Durante minha breve trajetória como tradutor de patentes, me deparei com algumas invenções interessantes: controles de radiação, moldes de almôndegas que asseguram a forma final do produto, um sistema de controle remoto de máquina de lavar roupa. Nada, no entanto, como o par de óculos que vi no meio da rua. Ninguém daria nada por eles: parecem iguais a tantos outros, figurinhas fáceis em bailes de formatura ou de debutantes. São azuis e suas lentes – se ainda estivessem presas à armação – teriam forma de estrela. 1

Então, o que há de diferente neles? Em vez de corrigirem miopia, astigmatismo, hipermetropia ou protegerem os olhos da radiação solar, eles permitem que se vejam balões – ou bexigas, dependendo do dialeto local – amarrados na cintura das pessoas. 2

Cada uma leva consigo pelo menos uns três desses balões pouco acima da cabeça. Algumas têm tantos que chega a surpreender que ainda não tenham alçado voo. Outras, elegantes e minimalistas, passeiam por aí com apenas um. Os balões não variam apenas em cor e forma: alguns são visivelmente mais resistentes, como se protegidos por demãos diárias de verniz; outros, de tão transparentes, parecem bolhas de sabão. 3

Uma hora você finalmente se acostuma a vê-los: tão comuns quanto tênis coloridos ou guarda-chuvas se abrindo ao primeiro sinal de mudança de tempo. Fica mais curioso a respeito do que se pode fazer com eles. Vide, por exemplo, aquele grupo de adolescentes: não dá para saber quais balões são de quem. Um dos rapazes estoura – foi sem querer? – um dos quatro balões de outro. Todos riem, inclusive este. Depois de um tempo, ao se separarem, é que se vê como o menino do balão estourado anda devagar. A força da gravidade parece atuar de forma excessiva sobre ele; as pernas parecem com a de um marionete pendurado desleixadamente. 4

Grandes poderes trazem grandes responsabilidades. Os óculos tornam os balões impossíveis de não se ver, mas também deixam estes vulneráveis ao temperamento quem pode vê-los tão facilmente. 5

Devolvo a invenção – será que alguém patenteou? – ao meio da rua. E passo a ter mais cuidado com onde posso encostar inadvertidamente.

STAR_EYE_GLASSES

Três coisas que talvez combinem com a coluna do momento:

* Espaço 6
* Corpo 7
* Chuveiro 8

  1. L. gosta de ler poesia. E só. Não liga se 2666, Liberdade ou A visita cruel do tempo foram chamados de “o livro do ano” por algum jornal. Não se interessa pela leitura de A culpa é das estrelas, Divergente ou Academia de Vampiros: o Beijo das Sombras, nem depois de anunciarem as adaptações para o cinema. Prefere reler Um útero é do tamanho de um punho e esperar ansiosamente pelo lançamento da Poesia Total, de Waly Salomão. A poesia é o seu balão. É difícil aturar todos esses leitores de prosa, que não perdem uma oportunidade de imitarem aqueles poetas de rua: “Você gosta de poesia?”. Um dia, B. terá tantos poemas na boca do povo que a resposta de qualquer pessoa para essa pergunta será “Sim, o que você tem para me mostrar?”.
  2. F. gosta de bolo de chocolate com molho de cachorro quente. Ela mal consegue se controlar quando há ambos na mesma festa de aniversário, mesmo sabendo dos olhares recriminadores dos amigos quando a veem com um dos ingredientes nas mãos. Ela precisa de um esconderijo para poder comer a mistura em paz. O bolo de chocolate com molho de cachorro quente é o seu balão. Ela não sabe se detesta mais quem a recrimina pela combinação de sabores ou quem a olha torto por comer o que quer, mesmo sendo gordinha. Um dia, F. servirá em seu restaurante um waffle recheado com calda de bordo, manteiga de amendoim, bananas flambadas ao rum e bacon – Elvis Waffles – e ninguém pensará duas vezes antes de pedi-lo de sobremesa.
  3. H. gosta de Paralamas do Sucesso. Muito. Todas as playlists que tocam em seu computador incluem canções da banda. A música deles faz com que se sinta em casa, sempre foi assim. Paralamas do Sucesso é o seu balão. Tem quem os ache datados – e não pare de falar sobre isso. Tem quem sempre lembre a polêmica morte da mulher de Herbert no acidente. Um dia, quando estes haters estiverem em dificuldade e precisarem de conselhos, H. usará alguns versos da banda no meio da conversa – e os verá sendo repetidos como mantras.
  4. B. gosta de RuPaul’s Drag Race. Toda terça volta correndo da escola para assistir ao episódio que deixou baixando no computador. “Because if you can’t love yourself, how in the hell you gonna love somebody else? Can I get an amen?” Talvez devesse prestar mais atenção em Glee – pelo menos teria assunto para conversar no colégio, com todo mundo que gosta no seriado. RuPaul’s Drag Race é o seu balão. Ele não abre o bico a respeito disso para ninguém. Um dia, B. vai entender que it gets better.
  5. S. gosta de ficção científica. E para ele não é apenas um passatempo, mas uma questão de imaginação com verossimilhança – saber levar às últimas consequências todas as implicações de uma premissa que pode parecer fantasiosa hoje, mas não em alguns anos. Respeita, inclusive, a poesia scifi – ainda que não tenha se empolgado com nenhuma até o momento. A ficção científica é o seu balão. Ele não suporta quem não seja capaz de ver além da camada de entretenimento. Um dia, S. vai fatiar o peru de Natal com um sabre de luz.
  6. “L’inferno dei viventi non è qualcosa che sarà; se ce n’è uno, è quello che è già qui, l’ inferno che abitiamo tutti i giorni, che formiamo stando insieme. Due modi ci sono per non soffrirne. Il primo riesce facile a molti: accettare l’inferno e diventarne parte fino al punto di non vederlo più. Il secondo è rischioso ed esige attenzione e apprendimento continui: cercare e saper riconoscere chi e cosa, in mezzo all’inferno, non è inferno, e farlo durare, e dargli spazio.” (Italo Calvino, Le città invisibili, 1972) Tradução: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”
  7. “We’re all one thing, Lieutenant. That’s what I’ve come to realize. Like cells in a body. ‘Cept we can’t see the body. The way fish can’t see the ocean. And so we envy each other. Hurt each other. Hate each other. How silly is that? A heart cell hating a lung cell.” (Donald Kaufman, The Three, s/d) Tradução: “Somos todos um só, tenente. Acabo de descobrir. Células de um corpo que não vemos, como os peixes não veem o mar. Por isso nos invejamos, nos ferimos, nos odiamos. Tolice, não é? A célula cardíaca odeia a pulmonar.”
  8. “What if the water that came out of the shower was treated with a chemical that responded to a combination of things, like your heartbeat, and your body temperature, and your brain waves, so that your skin changed color according to your mood? If you were extremely excited your skin would turn green, and if you were angry you’d turn red, obviously, and if you felt like shiitake you’d turn brown, and if you were blue you’d turn blue. § Everyone could know what everyone else felt, and we could be more careful with each other, because you’d never want to tell a person whose skin was purple that you’re angry at her for being late, just like you would want to pat a pink person on the back and tell him, ‘Congratulations!’ § Another reason it would be a good invention is that there are so many times when you know you’re feeling a lot of something, but you don’t know what the something is. Am I frustrated? Am I actually just panicky? And that confusion changes your mood, it becomes your mood, and you become a confused, gray person. But with the special water, you could look at your orange hands and think, I’m happy! That whole time I was actually happy! What a relief!” (Jonathan Safran Foer, Extremely Loud & Incredibly Close, 2005) Tradução: “E se a água que saísse do chuveiro fosse tratada com um produto químico que reagisse a uma combinação de coisas, como batimento cardíaco, a temperatura corporal e as ondas cerebrais, de modo que sua pele trocasse de cor dependendo do seu estado de ânimo? Se você estivesse extremamente empolgado, a pele ficaria verde, se você estivesse brabo a pele ficaria vermelha, obviamente, e se você estivesse se sentindo como um cocoruto você ficaria marrom, e se estivesse triste ficaria azul. § Todo mundo saberia como o resto das pessoas está se sentindo e poderíamos ser mais cuidadosos uns com os outros, pois você jamais ia querer dizer a uma pessoa com a pele roxa que você está brabo com ela por ter se atrasado, ao mesmo tempo que ia querer dar um tapinha nas costas de uma pessoa rosa e dizer a ela  ‘Parabéns!’ § Outra razão que torna essa invenção boa é que muitas vezes você sabe que está sentindo um monte de alguma coisa, mas não sabe que coisa é essa. Será que estou frustrado? Será que só estou mesmo aflito? E essa confusão modifica seu ânimo, ela se torna o seu ânimo, e você vira uma pessoa confusa, cinza. Mas com a água especial você poderia olhar para as suas mãos laranja e pensar Estou feliz! Na verdade eu estava feliz esse tempo todo! Que alívio!”