Talvez você não saiba, mas existem muitas histórias de ficção científica e fantasia à disposição na Rede.1 E são textos de qualidade, do tipo que concorre (e vence) prêmios e se perpetua em antologias ao longo das décadas. Histórias cujos nomes um dia podem ressonar para os admiradores tanto quanto Nightfall, A Sound of Thunder ou Johnny Mnemonic.

A parte boa é que a maioria pode ser acessada gratuitamente. Tudo fruto de um fenômeno editorial dos últimos anos, criado pela conjunção, entre outros possíveis (salvem-me os catedráticos), dos seguintes elementos: (a) o desinteresse do mercado em comercializar textos curtos; (b) a tradição das revistas americanas de publicarem ficção, como por exemplo a Astounding Science Fiction e a The Magazine of Fantasy and Science Fiction, que dominaram esse nicho nos anos 1950 e 1960; e (c) a audiência explosivamente ampliada da Internet. Existem agora muitos modelos de negócio disputando esse espaço, mas o que importa é que vários deles incluem entre seus mecanismos de funcionamento o seguinte item: liberar histórias sem cobrar diretamente por isso.

A parte ruim (pelo menos para você que está lendo este texto na sua língua materna) é que quase tudo está em inglês. Alas, poor Yorick!

Nos próximos meses2 tentarei fazer uma seleção do que aparecer de melhor nas revistas e sites de ficção científica e fantasia. Buscarei além disso fazer um equilíbrio de temas e estilos, sempre priorizando a qualidade dos textos.

Claro, se eu tiver esquecido alguma história essencial, ou se quiserem apresentar alguma fonte nova de contos e novelas, ou se quiserem reclamar da falta de elfos, o espaço de comentários é de vocês.

Originais

The Devil in America, Kai Ashante Wilson (Tor.com, 15.065 palavras) – Entre dezenas de histórias de fantasia capa e espada, às vezes aparece uma assim, tão fora dos padrões quanto The Devil. O cenário é o Sul estadunidense, em um período próximo ao da Guerra da Civil. A protagonista é uma garotinha negra e livre, que ouve vozes, às quais pode pedir pequenos favores. Esse dom tinham também seus irmãos e seus tios, homens e mulheres, mas nenhum deles ainda vive. Wilson traz, entre várias boas ideias, o paralelo entre a perda do conhecimento do ocultismo e a perda das tradições do negro tomado como escravo. Vale o selo “Melhor do mês”. Para outra excelente história de magia entre mãe e filha, leia também Water in Springtime, de Kali Wallace.

Our Fire, Given Freely, Seth Dickinson (Beneath Ceaseless Skies, 7.179 palavras) – Pra compensar a anterior, aqui se trata de fantasia mais convencional, em cenário feudal. A originalidade fica por conta do “fogo”, uma energia que permeia todos os indivíduos, mas usualmente dedicada aos suseranos para que se fortaleçam nas batalhas.  A tensão do conto gira em torno da criação de uma estratégia alternativa, em que camponeses trabalhariam juntos o fogo.

The Day the World Turned Upside Down, Thomas Olde Heuvelt (Lightspeed, 9.777 palavras). Premissa absurda – a gravidade se inverte; as coisas passam a cair em direção ao céu –, mas conduzida de forma perfeita pelo holandês, que tem obtido destaque recentemente. Para outro exemplo do seu talento, leia The Ink Readers of Doi Saket, indicado ao prêmio Hugo de melhor conto de 2013.

Three Partitions, Bogi Takács (GigaNotoSaurus, 7.578 palavras) – Ficção científica soft, que mostra o rigor doutrinário do judaísmo transplantado para um planeta com formas de inteligência diferentes. Embora não tenha o mesmo primor na execução que o anterior, vale pelo hebraico.

Ormonde and Chase, Ian Creasey (Asimov’s, 5.140 palavras) – Ormonde e Chase têm uma floricultura artística. Ela cuida das plantas – geneticamente modificadas para se parecerem com celebridades ou entes queridos –, enquanto ele cuida da administração. Uma história sobre relacionamentos maduros, com um pano de fundo bastante original.

Franscisca Montoya’s Almanac of Things That Can Kill You, Shaenon K. Garrity (Lightspeed, 4.110 palavras) – Pós-apocalíptico do mês. Escrito na forma de um guia para sobreviver ao fim da civilização, traz dicas sempre úteis sobre os cuidados com o beribéri ou matilhas de cães ferais.

Codename: Delphi, Linda Nagata (Lightspeed, 3.993 palavras) – Aperitivo para o cenário de ficção científica militarista de Nagata, que concorre ao Nebula com o romance The Red: First Light. No conto é dado enfoque ao trabalho dos operadores que coordenam as equipes de campo, utilizando terminais high-tech e drones com câmeras.

Passage of Earth, Michael Swanwick (Clarkesworld, 7.213 palavras) – Mais uma vez, a criatividade ilimitada de Swanwick não decepciona. A maior, e melhor, parte do conto é dedicada à autópsia de um alienígena. Grátis: lições sobre a anatomia dos anelídeos.

Republicações

The Autopsy, Michael Shea (Lightspeed, 15.213 palavras) – Mais uma autópsia no mês, desta vez para relembrar a obra de Michael Shea, falecido em fevereiro deste ano. Na novela, o especialista médico de uma companhia de seguros chega a uma cidade do interior para analisar os corpos de mineiros mortos num desabamento. Publicada originalmente em 1980, The Autopsy antecipa tanto Arquivo X como CSI, numa das melhores histórias de horror já escritas.

Exhalation, Ted Chiang (Lightspeed, 6.615 palavras) – Uma oportunidade para conferir este que, numa votação recente da revista Locus, foi escolhido o melhor conto do século XXI. Lembra algumas histórias célebres de Asimov, como O cair da noite e Os próprios deuses, em que o trabalho científico aparece nos seus melhores aspectos. Texto obrigatório para os cursos de escrita criativa em mecânica dos fluidos. Brilhante.

Juniper, Gentian and Rosemary, Pamela Dean (Apex, 4.857 palavras) – Ao contrário dos dois anteriores, tem um tom mais cotidiano. Mostra três irmãs de personalidades bem diferentes (um arquétipo adorável, por sinal), que se envolvem no mistério de um novo vizinho. Inclui diversas charadas e uma máquina do tempo. Publicado originalmente em 1989.

Dinossauros!

A editora Draco abriu este mês as inscrições para uma coletânea de contos baseados em dinossauros. Para não ficar apenas no Jurassic Park, para quem estiver precisando de inspiração vale consultar:

O Voo do Ranforrinco, do próprio Gerson Lodi-Ribeiro, um dos organizadores da coletânea, que saiu na última Somnium;

The Turkey Raptor, de James Van Pelt, que saiu na última Asimov’s, e mostra um Utahraptor nos dias de hoje;

e If You Were a Dinosaur, My Love, de Rachel Swirsky, que está concorrendo tanto ao Hugo quanto ao Nebula na categoria conto.

Não ficção

A Locus Magazine de abril traz uma colaboração de Roberto de Sousa Causo sobre a ficção científica no Brasil. Causo destaca a arte de José Benicio Fonseca e seu trabalho com a série ZZ7, que moldou a imagem da morena fatal entre os brasileiros.

Em outros dois artigos curtos, o escritor comenta também o impacto da chegada ao país da editora portuguesa Saída de Emergência e o fechamento da Tarja Editorial.

Polêmicas!

Os indicados ao Hugo deste ano, que escolhe e premia as melhores obras de 2013, foram anunciados em 19 de abril. De imediato, duas controvérsias se instauraram. A primeira envolve a indicação de The Wheel of Time (que começa a ser traduzido por aqui como A roda do tempo) a melhor romance. Fãs, de um lado, defendem um reconhecimento tardio da saga de Robert Jordan, que tem no total 11.916 páginas (considerando também as contribuições de Brandon Sanderson). Do outro lado, aqueles que consideram incongruente que uma série em 15 volumes concorra como romance (e ser incongruente, no meio de FC&F, é ofensa capital).

A outra polêmica ocorre em torno da indicação de uma noveleta de Theodore Beale. Mais conhecido como Vox Day, o escritor é tachado como fundamentalista cristão, misógino e racista. Segundo especulam seus inimigos, teria havido uma combinação de votos entre seus seguidores, o que é proibido pelas regras do Hugo.

É isso então. Fim da coluna social, fim da história.

  1. Chame também de ficção especulativa ou ficção fantástica, e adicione horror, slipstream e tudo mais que tiver vontade.
  2. Enquanto durar o fôlego, porque este mês foram mais de 50 histórias. E novas revistas não param de aparecer por todos os lados e em todas as periodicidades: quinzenais, bimestrais, seguindo as estações do ano ou aguardando os deuses antigos emergirem das profundezas.