A leitura de Reflexões ou Sentenças e máximas morais, de François VI, duque de La Rochefoucauld (1613-1680), chama a atenção por vários motivos, dentre os quais gostaria de destacar um como o eixo de questionamento da presente resenha: que tipo de experiências vivenciou esse sujeito para que viesse a construir uma imagem tão pessimista de homem? Como foi a sua vida, e em que tipo de realidade social ele encontrou o solo histórico que forneceu as condições para o desenvolvimento de uma tal visão a respeito do homem e das coisas?

Para que possamos entender essa questão, cabem algumas informações a respeito das condições nas quais tanto o autor quanto a obra foram gestados, para que possamos ir além das colocações mais gerais e genéricas acerca da persona de La Rochefoucauld e de sua filosofia moralista.

A vida de La Rochefoucauld transcorreu na França do século XVII. Trata-se de um período marcado por mudanças sociais e políticas ora mais evidentes ora mais discretas. Como um mundo que saía aos poucos do medievo, no qual imperavam ainda os sustentáculos da feudalidade, a França encontrava-se imersa no longo e espinhoso processo de constituição da monarquia absolutista  como, aliás, vários “países” europeus. As feições aristocráticas do Estado permaneciam, mas sofriam constantemente o assalto dos novos nobres e dos burgueses, grupos sociais que cada vez mais se sobressaíam dentro das transformações que se processavam no comércio, no crescimento urbano, nas reviravoltas culturais e, talvez especialmente, na estrutura de poder e nas cúpulas decisórias.

A figura do Cardeal Richelieu  assim como a de seu sucessor, Mazarin  emblematiza o corpo de mudanças na França, e mostra que embora a sociedade de corte tenha continuado a vicejar como instância de decisões e deliberações, o centro nervoso do poder passava a ser, de fato, o monarca. A criação de um aparato institucional, material e simbólico que sustentasse um tal estado de coisas se tornara uma cruzada duramente levada a cabo por vários anos, e que seria coroada com Luís XIV (1638-1715).

A ascendência de La Rochefoucauld havia sido alçada à condição de nobreza por Luís XIII, e o autor, por tal, não passou imune às refregas que eram travadas em torno das prerrogativas aristocráticas e a ascensão de um grupo social com consideráveis meios pecuniários, os burgueses.

Os escritos de La Rochefoucauld, bem como sua vida, não podem ser pensados senão enquanto entranhados nesse conflituoso terreno histórico. Não é preciso ir muito fundo nas informações biográficas que dele temos para atestar isso, basta-nos considerar sua participação em alguns dos conflitos da época.

Como primeiro exemplo podemos citar as várias campanhas nas quais lutou, ainda na juventude, lado a lado com o rei da França, como a campanha na Holanda (1635-1636) e a batalha de Mardick (1646). Como segundo exemplo pode-se citar a Fronda, o conjunto de enfrentamentos que ocorreu na França entre 1648 e 1653, nos quais tomaram parte não somente grupos descontentes da nobreza como também cavaleiros reais, burgueses e mesmo elementos da plebe. Os esforços de centralização absolutista e seus aliados deslocaram interesses e relações arraigados no poder real desde os mais longínquos anos, de modo que nem a aristocracia nem outros grupos sociais ficaram inertes diante dessas transformações.

É possível perceber, pois, que o mesmo nobre La Rochefoucauld que lutou ao lado do exército real na juventude, pôs-se em combate contra os rumos da monarquia em outro momento. E é ainda o mesmo sujeito que posteriormente dedicou-se a criticar os comportamentos de corte dos nobres franceses, como as Reflexões ou Sentenças e máximas morais muito bem expressam.

Conforme se conhece mais sobre a vida de La Rochefoucauld, mais suas máximas parecem destoar da condição existencial que ele vivenciava cotidianamente. De que maneira é possível explicar o comportamento de um nobre que luta contra a autoridade que lhe sustenta, sendo, aliás, extremamente mordaz ao se referir a ela?

As colocações do sociólogo Norbert Elias, presentes no segundo volume de O processo civilizador, são muito elucidativas nesse pormenor:

A ‘superioridade’ do rei é sua [dos nobres] melhor garantia de distância em relação aos que estão abaixo [seja os não-nobres, seja a plebe]. Cada luta contra a superioridade do rei os obriga a procurar aliados nas camadas inferiores, e seu orgulho sofre ante a perspectiva de se colocar no mesmo patamar deles. A exigência de distanciamento e de superioridade, de preservar sua existência como ‘Grandes’ [nobres de grande renome], os força a adotar uma atitude ambivalente, cheia de repulsões e atrações, tanto para cima quanto para baixo – atitude sem saída. (p. 183) 1

A oscilação de atitudes de La Rochefoucauld é a encarnação do dilema que vive a nobreza francesa no processo de centralização absolutista: ela critica o rei em suas alianças políticas pela centralização, mas não pode deixar de apoiá-lo, pois é de sua autoridade real que emana a condição de nobreza dela própria.

A acidez das máximas, o pessimismo quanto ao homem, sua vaidade, a tirania de suas paixões e de seu amor-próprio, são expressão do repúdio de La Rochefoucauld à intrincada diplomacia cortesã, cheia das aparências, rituais e ardis que sustentam a permanência de cada um dos aristocratas no rol de privilegiados pelo poder real. No entanto, trata-se do mesmo repúdio que ele se obrigou a sustentar para manter seus privilégios.

Talvez seja possível tomar a epígrafe do livro como a síntese da visão do autor acerca do espírito humano: “Nossas virtudes são, no mais das vezes, vícios disfarçados” (p. 11) É com base nessa colocação inicial que ele destila as demais máximas (mais de 500), tais como: “As paixões são os únicos oradores que sempre convencem.” (p. 12), “Na maioria dos homens, o amor à justiça é apenas o receio de sofrer a injustiça.” (p. 21), “Em geral só elogiamos para ser elogiados” (p. 30). Ao escrever isso, La Rochefoucauld criticava as veleidades que observava na corte, mas nem por isso devemos presumir que ele não as praticasse como forma de sustentar seus próprio status quo dentro das cortes que se formavam em torno da monarquia absolutista. Daí a ambivalência “cheia de atrações e repulsões” notada por Norbert Elias.

No clima conspiratório que ronda as cortes, onde cada olhar e ato pode se constituir numa tentativa de sublevação ou o motivo para acusações e suspeitas, disfarçar suas próprias paixões e intenções é um artifício de sobrevivência. O disfarce, contudo, é o ato que La Rochefoucauld elege como um dos mais negativos elementos formadores da conduta cortesã, pois torna toda a relação um potencial embuste e toda personalidade um mentiroso constructo de vaidade.

As máximas de La Rochefoucauld são produto desse modo de viver, e sua imagem de homem é aquela que o mostra como um ser guiado por impulsos passionais, pela vaidade, pelo amor-próprio, mais do que pela razão e pelas reais boas intenções. O ambiente onde o autor cresceu estava repleto de exemplos nesse sentido, e foi dessa experiência que hauriu sua visão de mundo.

A imagem de homem de La Rochefoucauld, portanto, não alcança níveis de transcendência e universalidade que costumamos encontrar em investidas filosóficas clássicas, ela se encontra imediatamente modulada pela vida cortesã: limitada nesse sentido, mas nem por isso menos interessante para se compreender a vida como ela já foi vivida em outros tempos.

  1. ELIAS, Norbert. O processo civilizador Vol. 2 – Formação do Estado e civilização. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.