Cenário: essa imensa mesa de bar mais conhecida como “inbox do Facebook”. Bebia uma caneca de café, enquanto meu interlocutor (chamemo-lo Y.) tomava chá gelado de pêssego em um copo alto de vidro com pedras de gelo sem bolhas, com um ramo de hortelã na borda – porque ele é fino.

Quando enviei o link do protesto de um cartunista contra a censura do Facebook aos seus patos com pintos1, Y. disse que já o tinha visto e que aquela era uma das duas causas amplamente divulgadas nas redes sociais na semana com a qual se importava. A outra era a acusação de transfobia nos filmes de Hollywood: simultaneamente à unanimidade a respeito do merecimento de Jared Leto ao Oscar por seu desempenho em Clube de Compras Dallas2, havia uma discussão sobre as razões do mesmo papel não ter sido oferecido a atrizes transexuais – um artigo chegou a listar dez boas alternativas a Leto.

Pouco depois, já tínhamos voltado ao tema recorrente de nossas conversas: literatura. Y. revelou que, por razões semelhantes, apreciava uma vertente significativa da literatura contemporânea: escritores escrevendo sobre personagens escritores – ou seja, sobre aquilo que conhecem bem.

formas de voltar para casa

Ultimamente tenho lido menos romances que vão por esse caminho. Contudo, não tinha como escapar de Formas de voltar para casa, de Alejandro Zambra, terceira obra do autor lançada pela Cosac Naify. Digo: depois de ler (e gostar tanto de) Bonsai, você meio que se compromete a ficar de olho em todos os livros novos do cidadão – mesmo quando a leitura de um destes (mais especificamente, o seguinte, A vida privada das árvores) pode ser descrita como “boa, mas não memorável”3.

Se havia algo a aprender, não aprendemos. Agora penso que é bom perder a confiança no solo, que é necessário saber que de um momento para outro tudo pode vir abaixo. Mas na época voltamos, sem mais, à vida de sempre.

O romance visita a memória de um Chile que passa por um terremoto histórico e um período ditatorial até chegar a tempos de maior liberdade – uma liberdade que ainda ressente as limitações do trauma. Tudo pelo ponto de vista de um rapaz – apenas um menino, na época do terremoto – que está escrevendo um novo romance. É quase inevitável a especulação a respeito das relações entre a vida do narrador e as experiências do próprio Zambra.

Mas talvez seja melhor que você entenda assim, acrescentou depois, num tom indefinível. É mais fácil entender assim. É melhor pensar que tudo isso foi uma história de amor.

Lê-lo como se lê uma história de amor: é uma possibilidade dada pelo livro – provavelmente o mais maduro dos três Zambras publicados no Brasil. Do mesmo modo, poderia ser lido como um romance sobre os efeitos da ditadura, sobre o estranhamento das relações familiares. Mas, aos poucos, uma tônica maior parece ser dada ao livro que o narrador escreve, ao tanto de verdade a ser exposto pela escrita, ao uso de pessoas reais em uma obra de ficção.

Na falta de palavras próprias, os primeiros versos de uma canção de Aimee Mann resumem bem a experiência da leitura – e, talvez, a história de amor do livro.

Once upon a time is how it always goes
But I’ll make it brief
What was started out with such excitement
Now I’d gladly end with relief
In what now has become a familiar motif

Mas voltemos um pouco: antes de dar um exemplo de escritor narrando um escritor a escrever um livro que muito provavelmente é o romance que lemos, falávamos de transfobia em Hollywood. Não tendo visto o filme citado na polêmica, não posso dizer se a performance foi premiada pela atuação impecável de Jared ou pela “coragem” de ele não ter feito nada mais do que sua obrigação. Em outras palavras, não sei se esqueceria que o personagem é ficcional de tão “vivo” que pareceu ou se ficaria todo o tempo pensando “uau, sr. Leto, nem parece você mesmo!”4.

Apenas fico feliz que viva numa época em que não só as pessoas questionem a transfobia, como também sejam capazes de facilmente listar outras opções possíveis – há poucas coisas mais agoniantes do que uma argumentação que finda vagamente concluindo que são “necessárias políticas públicas que” etc.

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Essa ânsia por uma experiência mais próxima da realidade lembrou-me de um dos momentos mais inspirados de Olhe para mim, terceiro romance de Jennifer Egan publicado no Brasil. Lançada originalmente em 2001, a obra nos apresenta a uma espécie de rede social/banco de dados que forneceria um panorama completo da vida de pessoas comuns e incomuns. Quer conhecer a vida de um mineiro, um mendigo ou uma modelo? É só acessar. Uma das tantas justificativas para o sistema (apresentar o seu conceito na íntegra demandaria transcrever umas cinco páginas) é a seguinte5:

A maioria de nós está desesperada por experiências cruas. Trabalhamos em escritórios, lidando com intangíveis. Saímos para almoçar e falamos com outras pessoas cercadas de intangíveis. Ninguém realmente FAZ mais nada, e nossas pseudoexperiências são sobre escalar o monte Kilimanjaro em nossas férias de duas semanas ou tirar uma foto com o Dalai Lama no Central Park. Mas temos plena consciência de tudo o que estamos perdendo! Isso cria frustração, esse desejo de sair de nós mesmos. A tevê tenta satisfazer isso, livros, filmes, eles tentam, mas são todos muito fracos, muito mediados! Simplesmente não são REAIS o bastante.

Talvez pela leitura da Egan (ou por a conversa via inbox ainda estimular as sinapses cerebrais), interessei-me por um livro de não ficção, algo que não ocorria desde Longe da Árvore, quando foi citado na turnê da Intrínseca: O que me faz pular6, de Naoki Higashida, era fininho, interessante e endossado por um autor que me conquistou com seu Cloud Atlas – David Mitchell.

Assim como Nick Hornby – outro escritor entre meus prediletos – David Mitchell tem um filho autista. Ambos os autores afirmam não planejar utilizar o tema ou a experiência em seus livros de ficção.

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Na introdução ao livro de Higashida, Mitchell pontua a originalidade da obra por ter sido escrita tão cedo – aos treze anos! – por um garoto autista; ou seja, não por alguém mais velho, a partir de lembranças da infância. Ainda que a experiência de autismo de uma pessoa não resuma necessariamente as experiências de outra, Mitchell disse que:

suas explicações sobre por que crianças com autismo fazem o que fazem foram, literalmente, uma resposta às minhas preces. “O que me faz pular”, concebido por um escritor ain­da com um pé na infância, e cujo autismo é pelo menos tão complexo quanto o do nosso filho, foi como uma revelação divina. Através das palavras de Naoki, pela primeira vez senti como se o meu garoto estivesse falando conosco sobre o que acontece dentro de sua cabeça.

E isso é patente na obra, mesmo para aqueles que, como eu, nunca tiveram contato direto com autista algum. A estrutura de perguntas e respostas dos capítulos que consistem na maior parte do livro deve falar diretamente a quem conheça alguém com tal condição médica.

Diretamente, mas não objetivamente: o livro não foi escrito por um estudioso do tema, com precisão científica, mas por uma criança. Às vezes, ele simplesmente não sabe a razão para agir de certa forma; às vezes, até sabe… só não consegue explicar.

Não que houvesse ali alguma pretensão literária, para ela a literatura parecia tão distante quanto o tabuleiro de xadrez.

A citação acima é do novo romance de Carola Saavedra7O inventário das coisas ausentes, e diz respeito aos diários de certa personagem. Não é bem o caso de O que me faz pular – há passagens claras em que o autor visa mexer com as emoções do leitor, assim como há algumas fábulas que intercalam as perguntas e respostas e um conto no final do livro – mas explica bem a conclusão a que cheguei enquanto conversava com outro amigo (chamemo-lo F.): um bom livro de não ficção não precisa ter grandes pretensões literárias, mas satisfazer o leitor que quer conhecer mais sobre determinado assunto/objeto/pessoa. F. não abandonou, por exemplo, o mesmíssimo livro8 que deixei parado na estante por “tempo indeterminado”: nas partes em que o autor dá uma viajada e quer ser literário/místico, com resultados de gosto duvidoso, meu amigo ativava o modo leitura dinâmica – afinal, ele queria mesmo era saber como era ser condenado à pena de morte por um crime que não cometeu.

E isso dá uma liberdade imensa na hora de escolher a próxima leitura: sim, é agradável uma prosa fluida, elaborada e bem escrita; só não é justo cobrá-la de alguém que está lhe dando a oportunidade de conhecer uma experiência distinta de vida9, em que “saber escrever bem” não adiantaria de nada10. As obras de não ficção se tornaram mais sedutoras se encaradas por esse viés.

E assim terminou mais uma conversa de bar. Só que não era num boteco, mas numa padoca. F. tomava um nescau gelado e eu tomava um chocolate quente.

* * *

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P.S.: Eu não pensava nessa coluna quando fui ver Hoje eu quero voltar sozinho11 no cinema. Gostei bastante, coisa pra se rever, com atenção. Quando saí do filme, não foi com o pensamento de “ah, o ator é gay” – como, aparentemente, alguns fãs fizeram, importunando nas redes sociais os moços que atuam no filme. Mas achei que valia a citação da obra neste texto por ser legal ver um ator cego protagonizando um filme etc. Já pensava em citar Longe da árvore e o tema do subtítulo do livro – pais, filhos e identidade. Bastou uma rápida pesquisa na internet para descobrir o meu erro: não, Ghilherme Lobo não é cego.

Ficção, suspensão da descrença etc.: deu pra ver que o que eu gosto é disso mesmo.

* * *

Três obras de não ficção que eu gostaria de terminar de ler:

Longe da árvore, de Andrew Solomon 12
Mercadores de cultura, de John B. Thompson
Amor em tempos sombrios, de Colm Tóibín

  1. O link pode ser visualizado aqui, por sua conta e risco.
  2. Não vi o filme, não pretendo opinar. Volcof viu e escreveu a respeito.
  3. De fato, pouco me lembro do enredo.
  4. Alguns pensamentos bobos incapazes de justficar um prêmio (mas quem sou eu para julgar?): “uau, Santoro, que transformação em Carandiru, hein?”; “seu Travolta, dava pra ver o quanto deve ter sido divertido atuar em Hairspray“; “Renée, vou te contar, merecidíssima a indicação ao Oscar; ninguém merece engordar tanto e não ser recompensada”; “dona Thatcher, quero dizer, Meryl: parabéns por ficar igualzinha à dama de ferro!”
  5. As palavras em caixa alta estavam em itálico no original.
  6. Esta observação é justificada pelo TOC que dá nome à coluna: assim como o livro do Zambra e o da Egan citados são os terceiros de cada autor, ao menos no Brasil, este livro é o terceiro de não ficção da editora que leio. O primeiro foi Bling Ring, que resenhei; o segundo, Vida após a morte, de Damien Echols, abandonei por tempo indeterminado. Como disse antes: o TOC explica.
  7. Que, infelizmente, não é o terceiro de nada, o que meio que estraga todo o TOC em torno das citações deste texto. Mas dane-se o TOC: o livro é bom pacas e também brinca com essa dualidade entre ficção e não ficção.
  8. Se você pulou a nota de rodapé “6”, me refiro a Vida após a morte, de Damien Echols.
  9. Vale ler o que Elvira Vigna disse no Paiol Literário: “É uma luta quase cotidiana ficar bem apesar da literatura, e não graças a ela. Leio (ficção diariamente), basicamente escritores brasileiros novos — é o que mais procuro ler. Leio o cara novo, novo, novo, que tem vinte, vinte e poucos anos e está lutando para encontrar uma voz. Não que o livro seja bom — em geral, não é. Tem uma diferença entre gostar do livro e gostar de ler, e eu gosto de ler esse cara. Muitíssimo. Através do Facebook me chegou um cara já bem mais velho, do interior do Rio Grande do Sul. Ele fez um diário meio deslumbrado de um jovem do interior do estado que estava indo para um grande centro, pela primeira vez longe da família, com possibilidade de sair com amigos, meninas, etc. E quando foi servir o exército, calhou de ele ser guarda da prisão do pessoal do Pasquim — do Ziraldo, do Millôr, que foram pessoas que eu conheci bastante bem. Então, não só através deles como de outras pessoas do meu círculo social que foram presas durante a ditadura, eu conhecia com bastante intimidade a experiência da prisão do ponto de vista dos presos. O livro desse cara, que era muito ruim e que eu adorei ter lido, me deu a experiência do ponto de vista do guardinha que estava do lado de lá da porta de ferro. Essa experiência tem um valor enorme pra mim. Até mesmo porque o livro é ruim, porque ele não se preocupou do ponto de vista formal, em enfeitar aqui ou fazer uma frase mais legal ali, até mesmo devido a essa ingenuidade literária ele me passou uma experiência que eu adorei ter.”
  10. Poderíamos falar do trabalho de edição, mas, hmm, não podemos nos esquecer dos casos de autores que simplesmente pedem para deixar do jeito que está – senão o livro vai pra outra editora.
  11. Mais uma vez, tem crítica do Volcof.
  12. Não me julgue. Pra quem costuma andar lendo, é meio difícil sair por aí com um calhamaço de mais de mil páginas. Humpf.