Aficionados por gêneros conseguem farejar de longe as referências dentro de uma obra. Os fãs de quadrinhos se deliciam com os easter eggs deixados pela Marvel em seus filmes. Os geeks saltam quando ouvem o nome de Stephen Strange ou quando a Manopla do Infinito aparece pela primeira vez. Não é necessário ser fã de filmes hollywoodianos para pegar as referências dos filmes de sátiras como Deu a Louca em Hollywood ou Todo Mundo em Pânico; e até em casos menores, como Shrek 2, os espectadores se divertem ao reconhecerem algo, e há um certo deleite quando percebem serem um dos poucos a notarem um mísero detalhe. E isso acontece, e muito, quando lemos O fundo do céu, livro do argentino Rodrigo Fresán lançado há pouco no Brasil pela Cosac Naify.

A história, assim por cima, trata de um triângulo (depende do ponto de vista e da forma geométrica que te apetece) amoroso entre fãs de ficção científica. “Fãs” é muito leve para classificar, “obcecados” seria uma forma também amena, mas um pouco mais correta, porque O fundo do céu é uma ficção científica sem ser. Na realidade, é um livro com ficção científica, como o próprio autor faz questão de frisar nos agradecimentos, e em sua essência é uma história de amor flertando com o melhor do gênero.

Dizer “flertando” talvez não seja tão preciso quanto “homenageando”. Philip K. Dick, Isaac Asimov, Arthur C. Clarke, Edgar Rice Burroughs são alguns dos nomes disfarçados em pseudônimos fonzies (e em adjetivos como “o bêbado de Baltimore”) espalhados por O fundo do céu. Sem contar as participações especiais de Star Trek, do famoso episódio de Orson Welles e da radionovela de Guerra dos mundos, de Além da Imaginação, entre outros, com seus nomes devidamente camuflados para deleite de todos que gostam de caçar easter eggs e referências. Um dos meus favoritos está na descrição apaixonada de 2001: Uma Odisseia no Espaço por Isaac, o que desperta aquela vontade de rever o clássico de Stanley Kubrick.

A literatura fora da ficção científica marca presença também. E essa mistura de histórias, referências, inspirações e homenagens monta o quebra-cabeça que é o estilo narrativo (por vezes prolixo, mas em um estado gracioso) de Rodrigo Fresán. Contudo, cabe um aviso sobre O fundo do céu: apesar de uma homenagem constante à ficção especulativa e seus maestros, não se estabelece somente uma desenfreada rasgação de seda. Fresán espalha críticas pontuais à escrita de muitos autores, aos clichês do gênero, passando pelo sexismo e o racismo até chegar a uma bela cutucada na cientologia.

É graças a Matadouro 5 que O fundo do céu está em nossas mãos. E também graças à obra-prima (na opinião desse que vos fala) de Kurt Vonnegut que temos a segunda e melhor parte do livro, intitulada “O espaço entre este planeta e o outro planeta”, onde a guerra do Iraque (qualquer guerra após o Vietnã é a mesma guerra) é narrada entre delírios e experiências extrassensoriais (e aí cabe um adendo de uma possível mistura do livro de Vonnegut com Highlander).

 

Todos os tempos ao mesmo tempo, Isaac.

 

O grande tento do livro está em utilizar o maior artifício da ficção científica: o tempo. Pouco importam invenções futuristas ou evoluções dos seres humanos, e pouco se dá valor às vidas extraterrestres que brotam na narrativa. Passado, presente e futuro se misturam para contar a história de Isaac, Erza e a misteriosa mulher de suas vidas. A mistura das vozes dos narradores aliados aos seus delírios e sua  por assim dizer – condição temporal (e dimensional, talvez?) traz ao leitor os melhores traços das histórias bioy-casarianas. O tempo, mesmo como uma convenção relativa e mutável de espécie para espécie pelo universo, é invencível. Um dia haverá o fim como houve o começo. E a única coisa em comum em todos os cantos do universo talvez seja a noite estrelada.

O fundo do céu é uma história de amor com ficção científica e ela deve ser assim tomada. Rodrigo Fresán defende que muitas vezes não é o argumento que sustenta uma história, mas seus momentos. E momentos não são nada mais do que fragmentos puros do tempo  passado, presente ou futuro, pouco importa. Às vezes não é o resultado que vale uma história, mas o caminho, o como tudo ocorreu. Deus sempre foi uma criança piromaníaca brincando em um quintal. Ela pode ou não queimar as coisas, e isso ficará no ar.