por Larissa Paes

Experimentar-se pelos arcanos das palavras é ser constantemente atingido por sua pujança, é ser inundado de fracassos, pois se entra constantemente no simulacro do controle; já que não se consegue agarrar a rebeldia das palavras, como se fosse possível segurar a primavera. Os escritores apresentam a incrível capacidade da convivência com tais seres, convivência tumultuada e, por vezes, torturante. Uma benção ou uma maldição?

A arte pela sinuosidade das palavras desnuda com agressividade o que se deixa envolver, sendo possível perceber tal ato. Mas e quando a arte se adentra no abismo da imagem?

O poeta Rilke (grande poeta do século XX de língua alemã) se alimentou das imagens, do inefável para se construir. Utilizou-se do seu espírito antropofágico para devorar Rodin, Van Gogh, Cézanne… Capturar imagens de maneira tão intensa que seja possível metamorfoseá-las, mesmo com fissuras, em palavras, talvez seja papel do poeta; comprovando-se isso no livro Cartas sobre Cézanne. No conjunto epistolar direcionado à esposa Clara, Rilke (quando estava em Paris – 1907) apresenta a percepção de um artista que absorve poeticamente a pulsão irrefreável da dimensão artística de Paul Cézanne; jorradas nas cartas de amor à arte. Antes disso, Rilke já havia feitos ensaios sobre Rodin, com caráter mais acadêmico e menos difuso (O poeta conviveu certa época com o escultor francês, sendo secretário). Percebe-se a ressonância sutil de tais apreensões imagéticas na sua poética, como no seu único romance Os cadernos de Malte Laurids Brigge (Rilke passou uns seis anos para concluir a obra, de 1904 a 1910).

Antes dessa apreensão no campo dos artistas franceses, o poeta já havia passeado pelo contexto artístico visual italiano e russo. Mas foi quando Paris chegou para Rilke (por volta de 1902) que explodiu uma revolução no seu gênio artístico, no sentido de sua percepção. No seu romance autobiográfico, o personagem Malte é um escritor em Paris. Neste livro, Rilke mostra, dentre outros aspectos (como a imensa saudação à infância), o jorro do impacto que a cidade parisiense provocou.

É pela mediação desses artistas visuais que o poeta ‘’aprende a ver’’. No romance, logo no começo, há um trecho que reproduz este principio de uma transformação significativa:

Aprendo a ver. Não sei a razão, tudo cala mais fundo em mim e não se detém onde sempre costumava se extinguir. Tenho um âmago que desconhecia. Tudo deságua nele, agora. Não sei o que se passa lá. (…) Será que eu já disse? Aprendo a ver. Sim, estou começando. Ainda é difícil. Mas quero aproveitar o meu tempo.

 

Há um diálogo pertinente entre a reinvenção através do ‘’olhar’’ de Rilke e o escritor uruguaio Eduardo Galeano, já que Galeano tem um pequenino texto intitulado ‘’A função da arte/1’’, no seu belíssimo livro O livro dos abraços:

Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar!

 

E foi quando se aventurou por Paris de Cézanne que esse ‘’olhar’’ se transformou definitivamente. Rilke, quando se interessava por algo, estudava com afinco, e foi assim quando se deparou com uma exposição de Cézanne. Suas confidências acerca dessa descoberta eram relatadas nas cartas à esposa, como já dito. Seu deslumbramento por Cézanne foi intenso, admirando o homem solitário e perfeccionista que se explodia nos quadros vertiginosos. Rilke admirava os constantes conflitos de Cézanne com seu trabalho, já que nenhuma de suas obras atingia o mínimo do que gostaria. Enfim, o poeta se encantava pelo modo como Cézanne se lançava como artista. Como no trecho:

Esse trabalho, que não tinha mais predileções, tendências nem caprichos esquisitos, e cujos componentes, por menores que fossem, eram postos à prova na balança de uma consciência infinitamente sensível; um trabalho que concentrava o ente de maneira tão integra sobre o seu conteúdo cromático, que iniciava, em um além das cores, uma nova existência, sem lembranças remotas. É essa objetividade ilimitada, que repudia toda e qualquer intromissão em uma unidade estranha, que torna os quadros de cézanne tão escandalosos e esquisitos para as pessoas.

 

Rilke no livro Cartas a um jovem poeta (outro conjunto epistolar dedicado ao jovem poeta Kappus – sendo a ”obra” mais difundida de Rilke) se mostra na reverência do reino das ‘’despalavras’’, como evidenciado no trecho:

As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível (…) e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existenciais misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, efêmera.

 

Já o poeta Manoel de Barros dedicou um livro às imagens, o Ensaios fotográficos. O arrebatar do Ensaios fotográficos começa logo com uma citação de Jorge Luis Borges: “Imagens não passam de incontinências do visual”. Assim como a poesia tem que “pegar” delírio, as imagens não se subordinam a comportamentos.

Ancorar uma imagem, tentar tangê-la é um desespero, no sentido da multidimensionalidade de tal linguagem. Mas Manoel adentra na loucura de poetizar sobre as imagens, dentro da pluralidade de probabilidade e dialogar o fazedor de imagens, no caso do livro, o fotógrafo, com o poeta. Tentar acolher a temporalidade do intangível é um dos objetivos, dentre uma imensidão expostas no livro, do poeta-fotógrafo manoelesco. Como fotografar o perdão.

‘’Vi ainda o azul-perdão no olho de um mendigo
Fotografei o perdão’’

O processo de singularização sobressaindo ao processo de automação é o que a arte propicia. O mundo recriado por esses poetas que incorporam as imagens e afetam microcosmos por palavras.

Sobre a colaboradora:  Filha do Nordeste. Promiscua das artes. Interessa-se profundamente por teatro, por dança, pois o corpo carregado de memória, o corpo simbólico a instiga. E é graduanda em Direito.