Não entre em pânico. Lição que já me foi útil enquanto encarava os rótulos de um supermercado húngaro. Não entre em pânico. E não perca o passaporte, mas se perder, não entre em pânico.

Don’t panic é a maior lição da literatura. Esqueça todo o resto, de O pequeno príncipe a Goethe, ninguém te dará um conselho tão sábio quanto este. Não entre em pânico e tenha sempre uma toalha ao alcance que tudo vai ficar bem, seja você um mochileiro das galáxias, da Europa ou de qualquer universo conhecido.

Pelo menos foi isso que eu tentei pensar quando percebi que não tinha mais um passaporte. 

Ouço daqui os gritos de espanto e indignação. Eu sei, eu sei, quando você sai pelo mundo, seu passaporte é tipo sua fonte de vida: sem ele você não sai do lugar, não faz nada, precisa reorganizar o plano todo e seu objetivo passa a ser um só, ter um passaporte. Mas eu perdi, o que posso dizer? Se eu não fosse esse tipo de pessoa, acho que nunca teria ganhado essa coluna.

Meu voo de Malta desceu em Bari, uma cidade aleatória do sul da Itália onde eu não pretendia passar mais que as horas necessárias para entrar em um trem para Roma. Olhei os horários e o primeiro trem saía às seis da manhã. Conhecendo meus hábitos de sono e pensando que podia economizar uma noite, decidi dormir no aeroporto e sair de lá às cinco da manhã para a estação de trem. Ainda em Malta, pensei: “vou cancelar a hospedagem de Bari, se dormir na cama nunca vou acordar pro trem”. Reviro meu email atrás do comprovante de reserva, olho em todos os sites que costumo usar, reviro o email mais uma vez. Eu nunca fiz uma reserva para Bari, estive destinada ao aeroporto desde o início, me sinto cumprindo meu destino, isso é quase uma tragédia grega.

Passo a noite no aeroporto e na hora de sair decido tirar o passaporte da bolsa e guardá-lo naquelas bolsinhas de carregar dinheiro dentro da roupa. Exceto que… Cadê o passaporte? Bom, não vamos entrar em pânico, é preciso revirar a bolsa, a mochila, a mala, tudo com calma. É preciso falar com a companhia área, pode ter caído no avião. Se eu perdi mesmo, preciso ir ao consulado. Tudo isso será resolvido melhor em Roma em um horário decente, portanto entro no trem.

Em Roma reviro todas as minhas coisas e não, não tenho mais um passaporte. Mas não entre em pânico. Ligo na companhia aérea que me diz que, caso encontrem algum documento no avião, esse documento é entregue à administração do aeroporto. Ok, ligo no aeroporto, mas ninguém me atende. Olho no relógio, é hora do almoço. Italianos são uma gente com prioridades acertadas e nada se resolve na hora do almoço, portanto decido fazer a única coisa que me resta: sair para almoçar e tomar sorvete.

Uma das melhores coisas da Itália, depois do sorvete, claro, é como em vários restaurantes você senta em uma mesa conjunta, ou as mesas individuais ficam tão próximas que você é obrigado a trocar pelo menos algumas palavras com seu vizinho. Nesse caso sentei ao lado de um casal de ingleses em seus 60 anos que me indicaram um restaurante em Florença do qual minhas lombrigas sentirão falta pela eternidade.

Mas enfim, almocei, tomei sorvete, prestei minha homenagem diária ao Fellini na Fontana di Trevi (estive em Roma duas vezes, na vez anterior fiquei por uns 6 dias, juro que acho que fui até a Fontana di Trevi todos os dias. Sou uma boa devota das coisas que importam) e telefonei de novo. Sou atendida por uma moça simpática que me diz que o setor de achados e perdidos com o qual estou falando só cuida das bagagens, para documentos preciso ligar na polícia, mas ela me da o número.

Muito bem, ligo na polícia. “Pronto”, fala a voz do outro lado, “posso falar em inglês?”, eu pergunto. Ele responde: não! E desliga na minha cara. Mas não entre em pânico. Ligo de novo no achados e perdidos e conto o que aconteceu, a moça simpática me passa outro número, mas diz que só posso ligar no dia seguinte, pois só atendem de manhã. Ok, me conformo e vou aproveitar o dia.

Na manhã do dia seguinte ligo para esse número, ninguém atende. No fundo da minha mente, desconfio que a moça me deu um telefone qualquer só para se livrar de mim, mas ainda não entro em pânico. Ligo de novo no achados e perdidos, falo que me deram um telefone, mas ninguém atende. “Você tem que ligar na polícia”, diz a nova moça, bem menos simpática que a do dia anterior. Digo que não falo italiano, ela diz que alguém lá fala inglês. Respiro fundo e tento de novo. Não, ninguém lá fala inglês e o homem que atende o telefone continua desligando na minha cara.

Mas não entre em pânico.

Nesse momento era um sábado, caso eu precisasse ir ao consulado só poderia ser na segunda. Porém, eu só tinha reserva para um quarto em Roma até o domingo, e aquela cidade estava mais cheia que baldeação na Sé em dia de greve de ônibus. Decido, em um ato de fé e burrice, ir até o aeroporto de Bari ver se meu passaporte está lá. Penso que ele só pode estar lá, que não consigo falar com a polícia pelo telefone e sim, eu considerei usar o Google translator.

Bom, acordo domingo, compro uma passagem de trem e vou. Acho a polícia, abro olhos de gato de botas cheios de esperança e… Não, ninguém achou meu passaporte. Pode entrar em pânico agora? Se não pode, tarde demais, já estou chorando na frente da polícia.

Saio do escritório, sento no chão do aeroporto e choro convulsivamente por uns cinco minutos. Então respiro, lembro que não adianta entrar em pânico e processo que o policial me disse que havia um consulado em Bari. Se tem em Bari, tem em Florença, onde eu tinha um teto para aquela noite.

Vou a Florença, descubro onde é o consulado e descubro que passaportes saem na hora. Ficou mais fácil não entrar em pânico. Segunda-feira acordo, vou ao consulado e dou com a cara na porta pois ele só abre terça. Mas não entre em pânico. Passeio pela cidade e vou no dia seguinte. Toco a campainha uma vez, nada, toco outra, nada, mais uma… De qualquer forma eu já tinha descoberto nesse tempo que o consulado de Florença era só uma representação e eu provavelmente teria que ir a Milão. Me conformo então com a falta de resposta à campainha, saio pra passear; no dia seguinte vou a Milão e resolvo isso, de lá sigo para Veneza, onde meu teto para a noite me aguarda.

O único porém: o site do consulado me diz que preciso de um BO da polícia italiana para tirar outro passaporte. Ops. Terei que fazer isso no dia seguinte, antes de ir pra Milão. Tudo bem, tenho ótimas memórias da confecção do meu BO cubano, acho que eu poderia começar uma coleção, BOs do mundo todo.

Acordo no dia seguinte, vou à delegacia, sou atendia por um senhorzinho muito simpático que não fala uma palavra de qualquer língua que eu fale (tentei até yiddish) e eu não falo uma palavra de italiano. Tudo dá certo, mas levo um pouco mais de tempo do que esperava e perco o trem que chegaria em Milão antes do consulado fechar.

Não entre em pânico, eu tenho um voo para Budapeste no sábado, mas ainda é quarta. O que na minha vida é feito com antecedência, não é mesmo? Vou para Veneza, no dia seguinte acordo às quatro da manhã, pego um ônibus, um trem, um metrô e finalmente chego ao consulado de Milão.

Vejo anjos já preparando as trombetas.

Entro. “Você tem aí sua certidão de nascimento?” “É… Não, não costumo andar com ela.” “Ahhh, alguém vai ter que mandar pelo correio.”

Ok, agora já pode entrar em pânico. Começo a hiperventilar e falar vinte coisas incoerentes no espaço de 30 segundos, então o atendente diz “calma, fica calma” e me leva para um escritório. Lá encontro alguém importante, gosto de pensar que era o próprio cônsul, embora eu saiba que devia ser só o último assistente. Ele fala que se eu puder mandar a certidão por email tudo bem.

Ligo em casa, acordo minha mãe e digo que preciso que ela tire uma foto da minha certidão de nascimento e mande pra um email. Ela não sabe fazer isso. Sabe mandar por whatsapp o que não me adianta de nada, mas não por email. Antes que eu tenha nova crise de choro, ela diz “e fax?”. “E fax?”, pergunto desesperada ao talvez-cônsul. Fax pode.

Fax, que coisa vintage. E eu achando que a delegacia cubana tinha sido retrô.

Acontece que mamãe também não sabe usar o fax lá muito bem. Segue-se meia hora dela tentando mandar, o talvez-cônsul perdendo a paciência comigo e eu tremendo e segurando o choro e tentando não entrar em pânico e pensando será que tudo estaria melhor se eu tivesse uma toalha?

Afinal a certidão chega. Os anjos levam as trombetas à boca.

Pago uma taxa, tiro impressões digitais e tenho um novo passaporte onde está escrito “expedido pelo consulado geral de Milão”. Soam as trombetas da vitória divina, vai dar tudo certo, vou chegar em Budapeste. Mencionei que não me pediram o BO? Então, não pediram.

Aviso minha mãe que deu tudo certo e ela diz “guarda esse passaporte dentro da calcinha!” Me pergunto se ela já parou para pensar na taxa de movimentação dentro da minha calcinha, mas fico quieta e só saio pelo mundo feliz e saltitante.

Não perca o passaporte é um bom conselho. Caso isso aconteça, não entre em pânico. Aprendi a lição preciosíssima de que só quando não estou em pânico consigo pensar em como sair dessa.