Então eu cruzei pro outro lado da Europa

Em Budapeste, há sapatos na beira do Danúbio. Sapatos de homens, mulheres, um par de botinhas de criança, sapatos de salto, botas descosturadas, um único pé abandonado de uma sandália. Sapatos de bronze modelados com base nos que foram deixados pra trás por pessoas atiradas no rio durante o Holocausto.

Eu detesto museus do Holocausto. É preciso lembrar, eu sei disso, repito para mim mesma, repito para quem quiser ouvir, repito quase como um mantra: é preciso lembrar, ou, mais precisamente, é preciso não esquecer. Ainda assim, parte de mim rejeita a ideia de entrar em um museu cujo objetivo é fazer eu me sentir mal por algumas horas. 

Chorei em todos os museus do Holocausto a que fui, claro, mas é um choro provocado, ritmado. Como se emocionar em um filme de Hollywood que foi perfeitamente construído para arrancar de mim uma resposta emocional. Não quer dizer que o que está ali não tenha acontecido, ou que não seja de fato terrivelmente triste, ou que aquelas pilhas de cabelo, sapatos, pentes, cigarreiras e outros pequenos objetos pessoais não possuíssem um dono que foi levado para o inferno. Chorei na frente de cada pilha dessas. Chorei na frente das paredes repletas de nomes, das velas na frente dos nomes de crianças. Mas chorei porque paguei uma entrada cujo principal objetivo era me fazer chorar, mais do que lembrar, mais do que contar uma história, mais do que tentar ensinar qualquer coisa.

Gosto mais dos memoriais. Monumentos simples que se colocam no meio do caminho para lembrar. Eles não manipulam a tristeza daquele que vê, só lembram, só não deixam esquecer. Quase uma pedra no meio do caminho.

Há em Budapeste outro memorial do Holocausto, uma árvore cujas folhas são placas onde se lê o nome e local da morte das vítimas. Elizabeth Klein, Anne Stejnberg, Joseph Cohen. Auschwitz, Treblinka, sobrevivente. Não há sobreviventes no memorial dos sapatos, todos os donos têm seus corpos no fundo do Danúbio. Ao mesmo tempo, nunca vi tanta vida em algo que queria me lembrar apenas a morte. Os sapatos são feitos em um detalhamento assustador, retêm o movimento que sapatos teriam no momento em que um pé os abandonou, como se ainda fossem calçados por corpos fantasmas. Como se fossem assombrados.

Sarajevo é uma cidade assombrada. É possível ver buracos de balas nos prédios, é possível visitar o túnel que por anos foi a única conexão da cidade com o mundo exterior. É possível fazer um tour que se chama “Sarajevo sobre o cerco”, mas não são esses os verdadeiros fantasmas.

Eu tinha sete anos quando terminou o cerco de Sarajevo e a guerra da Bósnia. Oito quando começou a guerra do Kosovo. Guardo o noticiário dos anos 90 como uma sequência infinita de guerras em uma parte do mundo que minha mãe chamava de Iugoslávia. Me lembro do dia em que, na escola, nos sentamos em volta de jornais para que entendêssemos, pelo menos um pouco, porque naquela parte do mundo uma menina de cabelos loiros, da minha idade, talvez parecida comigo, usava uma tiara com orelhas de mickey que eram na verdade alvos.

A primeira coisa que vi em Belgrado foram prédios bombardeados.

Quando disse que queria pegar um ônibus de Belgrado a Sarajevo, algumas pessoas se espantaram e perguntaram se era mesmo possível. Eu não tinha certeza na verdade, o guia me dizia que sim, mas eu não encontrava nenhuma informação na internet. Quis tentar mesmo assim.

Levei quase oito horas para fazer 319 km, na maior parte por culpa de estradas sinuosas e chuva torrencial; no posto de fronteira não estive por mais do que meia hora. Muito menos do que me custou cruzar a fronteira entre o Egito e Israel, anos antes da primavera árabe, dois países que teoricamente estavam em paz desde 1973. Comentei com uma senhora suíça ao meu lado que achei que seria mais difícil. Ela se espantou, ficou surpresa que tivéssemos mesmo que mostrar um passaporte.

Me pergunto se ela nunca soube ou se esqueceu.

Há um lado muito sombrio na afirmação de que não se pode esquecer. Uma visão monstruosa da natureza humana na segunda parte da fala, uma que raramente enunciamos: é preciso não esquecer, porque quando esquecermos vai acontecer novamente. Quando esquecermos, alguém, em algum lugar, por algum motivo, matará mais uma vez milhões de pessoas de forma industrial. Dessa vez, provavelmente serão mais milhões.

É preciso não esquecer que o século XX foi um dos mais sangrentos da nossa história. Hoje, a população da Hungria é 8 milhões de pessoas menor do que em 1900. Duas guerras mundiais, a dissolução de um império e anos de guerra fria deixaram um saldo do tamanho de um país. De muitos países. Há diversos países europeus cuja população não chega a 8 milhões de pessoas, mas esse é só o saldo de mortos de um século em um país que nunca foi assim tão grande.

Eu me surpreendo com a suíça que não imaginou que pudesse ser difícil cruzar da Sérvia para a Bósnia. Mais ainda porque o Leste Europeu parece uma enorme ferida mal cicatrizada do século passado. O lugar em que é possível ver as linhas da costura.

Budapeste é bela como poucas cidades, mas uma saída de rota em direção ao cemitério me levou para prédio enegrecidos, desabados e uma ou outra estátua esquecida dos tempos de comunismo. Em um bar de Sarajevo, eu não consigo não pensar que todo mundo ali viveu um cerco, o medo de simplesmente pôr água na boca porque ela pode estar envenenada. Descubro que Nikola Tesla era sérvio e não tenho nem ideia de como se chamava o país naquela época, quantos nomes teve cada um desses países?

Ao mesmo tempo, não esquecer não significa ser escravo da memória. Sarajevo é uma cidade viva como poucas, de gente que senta em mesas nas calçadas e bebe café, conversa rindo e gritando, lota as ruas assim que dá seis da tarde. Nessa sexta-feira, Sarajevo está cheia de chapéus azuis e amarelos e vuvuzelas que se animam 24 horas antes. A cidade é tão receptiva, tão calorosa, que me convence a ficar mais uma noite, só para assistir o jogo com eles, passar frio na praça e tentar aprender a cantarolar a melodia do hino da Bósnia.

Em Budapeste os prédios da virada do século que decaíram por falta de cuidado viraram bares. As ruínas viram labirintos com mesas de pebolim e balcões de cerveja artesanal, e você pode sentar em uma banheira para ver uma banda que canta naquela língua completamente impossível.

Não esquecer não significa chafurdar no sofrimento. Não esquecer pode significar aprender a conviver com ele, dar risada, convidá-lo para uma cerveja e cigarro. Meu ex-orientador uma vez me disse que a perspectiva de que se pode morrer amanhã dá uma outra intensidade à vida em alguns lugares. Acho que faz sentido. Sarajevo vive como quem já viu a morte muito de perto e partiu pra outra.

Quando deixo o monumento dos sapatos, me abaixo, pego uma pedra e a coloco dentro do sapato solitário, como se faz com os túmulos em cemitérios judaicos. Há muitos mortos, mas é preciso finalmente enterrá-los.