(Como já fiz algumas vezes, a coluna de hoje tem três partes que, ainda que tenham alguma relação entre si, podem ser lidas independentemente. A primeira é um resumo pessoal sobre as três últimas Copas, a segunda é um passeio insone por uma livraria imaginária, e a terceira é uma espécie de resenha do livro A vida do livreiro A.J. Fikry, de Gabrielle Zevin – esta, sim, talvez seja interessante ler depois das duas partes anteriores.)

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Três Copas

2006.

“A única Copa que teremos durante a faculdade!”, as pessoas bradam pelos corredores, como se já nostálgicos desse tempo. Mal podem esperar pelo único baile do Rubi 1, pela única colação de formatura, pela única festa de arromba de comemoração do término do curso que terão.

Se o amor da sua vida o chama para ver a Copa do Mundo, você vai – até porque Copa do Mundo, os amigos reunidos, é uma felicidade só.

Você lembra que o jogo era Brasil contra Croácia. O Google informa que o Brasil ganhou de um a zero, mas você só se lembra da sintonia entre o carpete verde da sala e o gramado na tevê, do tabuleiro de xadrez vermelho e branco nas camisas dos jogadores do time adversário (“eles deviam vencer só por terem um uniforme mais bonito”), de estar pertinho.

Estar pertinho é felicidade também.

2010.

“Você precisa sair de casa. Não me faça uma desfeita dessas!”, diz uma amiga que me chama para assistir a um jogo na companhia de ex-colegas de faculdade – até porque Copa do Mundo, os amigos reunidos, é uma felicidade só.

Como se chama quem não é mais o amor da sua vida? A resposta correta é: não se chama. Mas a amiga já o tinha feito, forçando todos os participantes a, no mínimo, um clima cordial.

Você não se lembra do jogo, mas das tentativas de usarem as vuvuzelas, do livro que trouxe consigo e não conseguiu ler – O complô, de Will Eisner – e das violetas numa janelinha, que serviram a um dos testes de masculinidade aos quais o submeteram numa tarde2. Você só sai do devaneio – “qual cor era a resposta certa?” – quando a amiga o chama pra conversar um tantinho.

Ter uma boa conversa em meio aos gritos é felicidade também.

2014.

“É a Copa das Copas”, diz a boca do povo, o letreiro no ônibus, o cartaz na parede, a propaganda na tevê. No espírito de “Copa do Mundo, os amigos reunidos, é uma felicidade só”, um dos seus melhores amigos o chama para ignorar a Copa.

Nada difícil, em se tratando de um apartamento alto – o que mitiga o clamor das ruas – com trilha sonora própria e papos ininterruptos e simultâneos – o que cala os possíveis gritos dos vizinhos.

Com lasanha ou panqueca, cria-se facilmente um microcosmo. Lá a combinação de verde e amarelo só está presente na opção vegana dos pratos e a tevê só é ligada para o povo se revezar em partidas de Mortal Kombat. Os assuntos das conversas são líquidos (ai, Bauman), os grupos que conversam entre si são tão fluidos quanto – o curioso é que ninguém se conhecia antes, todos amigos de diferentes rolês do anfitrião. Num canto da sala, perto do vasinho cujas violetas já começaram a murchar, uma plaquinha colorida dá o alerta: “Cuidado, planta violenta!”.

Prestar atenção, com uma galera, ao momento em que o disco do ALT-J começa a tocar “Breezeblocks” é felicidade também.

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O paraíso é uma espécie de livraria

Já fui desses que desejam insônia aos piores inimigos. Mas insônia acumulada com ataque de pânico não desejo a ninguém.

Não sei o que o desencadeou (as tranqueiras velhas sendo jogadas fora todos os dias, anúncios de que me mudarei de cidade ainda este ano; a escrita que não ia para a frente e os prazos; ou frescura mesmo) nem fui ao médico depois (como a situação não se repetiu, fiquei satisfeito com o diagnóstico do Google). Insônia já tive, ataque de ansiedade já tive, mas aquilo era bem mais forte.

Escrever não dava, ligar a luz para retomar a leitura de Dentes brancos só pioraria a insônia e a Bernadette3 deitadinha do meu lado não parecia ter nada adequado ao momento.

Ele pensava muito na morte, em como seria dormir para sempre e não acordar mais. Nessas horas, procurava ficar imóvel e fingir que havia morrido, tentar imaginar como seria ter um corpo sem vida, boiando num vazio eterno, não tornar a abrir os olhos, essas coisas animadas e edificantes nas quais a gente pensa quando não consegue dormir. (Noites de Alface, de Vanessa Barbara)

Entre tantos pensamentos agradáveis – “E se isso não for um ataque de pânico, mas, sim, um ataque cardíaco de verdade? E se, quando eu finalmente conseguir dormir, eu não estiver dormindo, mas morrendo? Quando será que vão descobrir que não estou roncando por não estar sequer respirando? Se eu ficar bem paradinho, será que consigo escolher qual será a pose em que me encontrarão? Será que eu deveria escrever um bilhetinho dizendo que eu deixo a biblioteca pra Manu e pro Panhoca (que saberão escolher o que pegarão e o que doarão para a biblioteca pública)? Acho que todo mundo vai ficar feliz por não ter de pagar para enviarem tantos livros na mudança, não?” –, resolvi, do nada, começar a pensar onde eu gostaria de estar.

Não sou Borges, de forma que preferi uma livraria à biblioteca da citação dele. Se eu conseguisse ativar o teletransporte para uma livraria aberta naquele momento e passear pelas suas estantes pegando dezenas de títulos para ler seus parágrafos iniciais, não teria problemas com a insônia. Poderia até, sei lá, ser uma noite insone-mas-feliz.

Foi quando me lembrei da Bernadette: peguei-a de jeito (e com gosto) e baixei inúmeras amostras de romances e livros de ensaios, tal como faria nessa livraria ideal e imaginária que me atenderia às 4 da manhã. Horas depois, dormi numa das poltronas próximas da seção infantil – em outras palavras, na minha cama mesmo –, tendo descoberto, entre outras coisas, que não era o público ideal de um livro que se vendia como algo a ser devorado por quem gostava do Nicholas Sparks.

Uma livraria 24 horas ao alcance da mão também é felicidade.

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O que falar desse livreiro que mal conheço e já considero pacas?4

Uma das várias amostras que baixei durante a pior das insônias foi a do livro A vida do livreiro A.J. Fikry. Dois amigos já tinham lido, outros estavam se programando para ler, mas não tenho ideia de quando ouvi falar do título pela primeira vez5. Eu li a amostra tão rapidinho… Percebi que não podia esperar mais e tinha de baixar logo o resto do e-book pra devorar 6

Desnecessário, pois a editora já tinha colocado o livro no correio (além de outras surpresinhas). Desnecessário, pois o que não faltava eram coisas para ler: Dentes brancos, de Zadie Smith, continua pela metade; eu tinha acabado de começar o ótimo A terra inteira e o céu infinito, de Ruth Ozeki.

Tudo começa com a visita da representante da Pterodactyl Press ao livreiro do título, numa cidadezinha numa ilha. Os lançamentos de inverno são menos badalados – “São azarões, pobres coitados, as apostas arriscadas.” – mas ela os ama. Em especial, um livro de memórias escrito por um velhinho viúvo.

Sabe que ‘Desabrochar tardio’ é um livro de pouca importância e que a descrição soa bastante clichê, mas tem certeza de que as pessoas vão amar se lhe derem uma chance. Pela experiência de Amelia, a maior parte dos problemas das pessoas seria resolvida se dessem mais chances às coisas.

Durante a leitura de A vida do livreiro A.J. Fikry, tive a impressão de que as palavras de Amelia valiam também para o que eu estava lendo. Sim, é um livro sobre amor aos livros: uma mãe abandona a filha para um livreiro ranzinza criar em meio aos livros; clubes de leitura são criados7; um lançamento é organizado; um escritor ronda a livraria; um exemplar de uma primeira edição rara é roubado; as pessoas discutem obras acaloradamente.

E como é raro achar alguém com seus gostos! A única briga que tiveram foi a respeito de David Foster Wallace. Na época do suicídio do Wallace. A.J. detestou o tom reverente dos tributos. O homem tinha escrito um livro razoável (apesar de indulgente e grande demais), alguns artigos modestamente perspicazes e não muito mais.
“’Infinite Jest’ é uma obra de arte”, dissera Harvey.
“’Infinite Jest’ é um teste de resistência. Se der conta de chegar ao fim, não tem escolha a não ser dizer que gostou. Se não, tem que lidar com o fato de que desperdiçou semanas da sua vida”, retrucara A.J. “Estilo sem substância, meu amigo.”
O rosto de Harvey ficara vermelho ao se debruçar sobre a mesa. “Você fala isso de todo escritor que nasceu na mesma década que você!”

Mas a definição de Amelia não vale apenas para parte do clichê – no caso, o amor aos livros. Vale também para como “a maior parte dos problemas das pessoas seria resolvida se dessem mais chances às coisas”. É um livro que dá vontade de sair por aí mostrando e pedindo que as pessoas deem uma chance – Hare Krishna style, sabe? E que também dá vontade de comentar depois com todo mundo que leu – talvez eu tenha me excedido, fiz até um quiz no Goodreads para ele.

Isso resume o que tenho feito nos últimos dias: comentar e recomendar.

Eu o li enquanto um jogo do Brasil se desenrolava (contra o Chile, se não me engano). Foi interessante: eu me animava com uma passagem em especial enquanto o povo gritava gol; momentos de tensão após uma descoberta (próxima ao final do livro) e começarem os pênaltis; no final mesmo, aquele choro (felicidade? alívio?).

Sintonia também é felicidade.

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P.S.: Em uma próxima coluna, gostaria de falar sobre a anatomia de um final feliz. Não prometo que é isso o que terão lendo os livros a seguir (os quais recomendo enfaticamente, achei-os muito bons) ou que concordaremos a respeito da felicidade de um final ou outro, mas resolvi listar logo os títulos, para os que têm medo de spoilers e vão querer ler a coluna inteira. São eles: Caninos em família, de Kevin Smith; Sérgio Y. vai à América, de Alexandre Vidal Porto; Aristóteles e Dante descobrem os segredos do universo, de Benjamin Alire Sáenz; Cadê você, Bernadette?, de Maria Sempre; e A elegância do ouriço, de Muriel Barbery.

  1. Evento de gala em que se reúnem as três maiores faculdades de Direito do Paraná, ou algo assim, ele se refere à pedra símbolo do curso, a que vai nos anéis de formatura etc.
  2. “Tem uma coisa estranha na tua unha: como você olha?” e “Todos acham que você pisou em cocô de cachorro: como você confere isso?”
  3. Assim se chama o meu kindle.
  4. Não, não estou falando do Guilherme – ainda que ele seja o livreiro com quem eu mais converse e ainda que eu pareça só falar de Guilhermes, de vez em sempre.
  5. Algo me diz que foi num tweet (mas pode ter sido um comentário do facebook) da Juju (mas pode ter sido a Manu ou a Lívia) que me fez achar que A.J. Fikry era o nome do autor, não parte do título.
  6. Vou repetir o que disse no Twitter. Sabe aquele biscoitinho que já vinha mordido pelo controle de qualidade do monstrinho? Vou passar a fazer algo parecido com meus livros: se eu emprestar o livro e uma ponta da capa estiver mastigadinha, é porque aquele é um dos devoráveis. Este é um deles.
  7. Peguei-me comprando A mulher do viajante no tempo numa promoção, apenas por ter sido citado como uma das leituras de um desses clubes.