Segundo o Rotten Tomatoes, O futuro – filme dirigido, roteirizado e protagonizado por Miranda July – não é exatamente um fracasso: 71% dos críticos não jogaram tomates podres na sala do cinema. Mas quem liga para o site, quando o único motivo para se ver um filme é o apreço de uma amiga pela diretora-roteirista-atriz-artista? Se mesmo aquela – Dindi, vocês devem conhecê-la – não gostou do último filme desta – Miranda, é provável que também a conheçam –, você tem o mesmo direito de não gostar dele, correto?

E eu não gostei mesmo. Digo, não gostei muito. Digo, gostei-mas-achando-estranho-e-com-medo-de-não-gostar-e-expressar-uma-opinião-que-se-assemelhe-ao-bullying. Sabe? Digamos que alguém chega na sua frente, enfia uma espada samurai na barriga e expõe as vísceras: você ri (“pô, cara, que ridículo, que papelão, hein?”) ou se comove (“eu sinto e entendo a sua dor, caro desconhecido”)? Eis o meu dilema. Há cenas ótimas e, outras, meio fáceis de ridicularizar; há momentos simples em que ainda nos pegamos pensando dias depois e, outros, em que frases banais tentam soar profundas sem muito sucesso, constrangedoras. No final, a sensação foi a de estar em um encontro com este filme: ele me disse “eu te amo” e me pediu em casamento; eu só pude dizer “obrigado, mas eu passo”.

Uma espécie de fracasso, portanto.

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Michael Chabon, romancista cujo próximo livro (Telegraph Avenue) chega às livrarias no fim do mês, também tem um famoso fracasso em sua conta. Dessa vez, minha opinião não diverge do consenso entre os críticos – até porque eles sequer puderam opinar sobre a obra. Depois de seu primeiro romance – The Mysteries of Pittsburgh (Usina de sonhos, esgotado no Brasil) –, Chabon passou 5 anos escrevendo aquela que seria sua segunda obra – Fountain City –, pela qual recebera alguns adiantamentos da editora. Ele escreveu mais de 1500 páginas, sem conseguir vislumbrar o quanto faltava para o final, antes de abandonar aquele desastre sem salvação.

No fim, ele acabou destruindo o romance – ou, pelo menos, as chances deste ser publicado. E utilizou sua experiência como inspiração para o protagonista de Wonder Boys (Garotos incríveis) – romance adaptado para o cinema com Michael Douglas, Tobey Maguire e Robert Downey Jr. –, um professor de escrita criativa que não consegue terminar seu quarto romance e entregá-lo ao editor, mesmo tendo ultrapassado as 2600 páginas. Ao contrário do lendário fracasso – conhecido por todos no mundo literário e, certamente, não escondido pelo escritor –, o romance e o filme são obras primorosas.

Há fracassos que vêm para o bem.

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Nada mais justo do que não querer saber de mais nada relacionado a um fracasso. Caso queiramos nos dar uma nova chance de conhecer (e gostar de) um artista, é saudável que nos distanciemos do gosto duvidoso da primeira impressão.

Não foi o que fiz, no entanto. Queria muito ler O escolhido foi você, escrito por Miranda July. Sim, o livro narra as visitas feitas pela autora a desconhecidos enquanto procrastinava a escrita do roteiro de O futuro – ela provavelmente falaria muito sobre este, portanto. Mas a questão era: havia uma resenha da Dindi para o livro. E, se a Dindi recomenda alguma coisa, não é para discutir: é pra ir lá e ler (ou ouvir ou ver ou comer).

Caso vocês não tenham me abandonado para ler a resenha – juro que era mais proveitoso e que eu não ficaria chateado –, jogo aqui um trechinho dela:

Além dos entrevistados, o fato dela falar sobre “O Futuro” e outros de seus trabalhos, abre a possibilidade de antigos admiradores enxergarem novas coisas. É como retornar a um museu com um guia. Poder saber como surgiram as ideias, quais eram as intenções da Miranda, os pontos em que ela se sentiu insegura e o que realmente foi filmado no fim é algo muito interessante. Considerava esse filme uma grande ideia, porém o produto final tinha alguns pontos “perdidos”. Agora é possível perceber o porquê e até pensar diferente.

E é isso. Por vezes falamos que um filme (um livro, uma roupa, um disco) é um “desastre sem salvação” – aliás, coloquei tais palavras na cabeça de Michael Chabon, parágrafos acima –, mas isso é retórica de Twitter: funciona muito bem por lá (ou num desabafo com um amigo), mas raramente representa a realidade. Diversas cenas que considerei constrangedoras em O Futuro ganharam novas nuances após a leitura do livro – um guia para o museu, segundo a Dindi; um caderno de notas de rodapé, foi o que pensei.

Depois da leitura, fui lavar uma louça pensando que “nada é sem salvação”.

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Se li O escolhido foi você como um caderno de notas de rodapé a O Futuro, não posso dizer o mesmo para Fountain City. Nele, as notas de rodapé são reais.

Mas, Tuca, o autor não destruiu o romance? Não, ele destruiu apenas as chances de publicação deste. A revista McSweeney’s publicou, em 2011, os quatro primeiros capítulos da obra (a wrecked novel) devidamente acompanhados de inúmeras e prolixas notas do autor. Nelas, Chabon discorre sobre: pessoas reais que teriam inspirado alguns personagens; para onde ele pensava em levar a história; a vergonha das mudanças-de-ideia-no-meio-do-caminho, claramente perceptíveis; quais poderiam ser as razões para a constante presença de personagens homossexuais em seus romances. Não sou desses que se interessam muito pelos bastidores e andaimes de um romance (biografias de escritores, por exemplo), mas os apontamentos do autor podiam ser lidos como ensaios independentes da obra de que seriam glosas. E o reconhecimento de seus “erros” torna, de alguma forma, melhores os capítulos que lemos.

Há cidadãos que apreciam serem “os artistas da casa” – e que gostam de esposas que sejam apenas suas mulheres, não pessoas com méritos artísticos próprios1 –, mas Michael Chabon não é um deles. Casado com a romancista Ayelet Waldman, ele enfatiza o quanto o olhar e a edição da esposa “salvaram” seus romances posteriores. Ele já tinha desistido de Fountain City antes de ela ter a oportunidade de fazer o mesmo por este.

“Ayelet could have save this book”, I thought, when I had finished looking these chapters over. Maybe, someday, given time, she will.

Eu sei que não devia depositar minhas esperanças nessa possibilidade, assim como bem sei que ainda tenho diversos títulos (algumas coletâneas de contos, obras escritas para crianças, ensaios, o próprio Telegraph Avenue) de um de meus escritores favoritos para ler. Mas, se “nada é sem salvação”, também não custa nada torcer para  Fountain City ser salvo por Waldman.

“Que Ayelet salve Fountain City“: essa é uma boa oração.

  1. Exemplo? F. Scott Fitzgerald, esse babaca, que tentou demover Zelda de escrever e publicar Esta valsa é minha, a versão ficcional dela para fatos que inspirariam o Suave é a noite, dele.