Na última terça-feira, aquele dia em que sete gols foram feitos, eu estava no bar do meu hostel em Praga cercada por adolescentes alemães em uma viagem da escola. Quando o jogo ainda era um mísero dois a zero, me lembro de ter dito para o americano ao meu lado: “não acho que vira, só espero que não seja um massacre”. Não demorou muito para eu morder minha língua.

Quando o jogo acabou, e antes que eu fosse levada para ver o castelo iluminado de madrugada em um passeio que acabou em chuva, frio e dor de garganta (fica aqui o aviso sobre as consequências do romantismo), uma menina loira subiu na mesa e gritou “esse é o futebol alemão!”. No domingo eu aprenderia que é mesmo. Não os sete gols (bom, eles também, mas não é disso que quero falar), mas a menina gritando em cima da mesa. 

Às 21h de domingo, 13 de julho, fuso horário de Berlim, chovia torrencialmente e eu estava no meio da multidão em frente ao portão de Brandenburgo tentando simultaneamente comprar uma cerveja e manter meu cigarro aceso. Quando caiu o muro de Berlim, eu imagino que estivesse fazendo meu próprio grafite com giz de cera nas paredes do quarto e usando chupeta, mas quando a Alemanha foi tetracampeã, eu estava pulando abraçada com uma menina de quem nunca saberei o nome, em algum lugar entre os anjos de Wim Wenders e a Alexanderplatz.

Foi a mais pura coincidência que eu estivesse em Berlim nesse dia. Se os alemães soubessem do pequeno histórico de pé-frio que já acumulei nessa viagem (peço perdão a Bósnia e Croácia), talvez tivessem barrado minha entrada, mas fui bem-vinda, recebida já no posto de fronteira com um sorrisinho debochado do policial que fiscalizou meu passaporte. E tinham me dito que alemães não brincavam em serviço.

Aliás, esqueça qualquer ideia de alemães reservados, frios, pouco amigáveis com estranhos. Deem uma copa do mundo para essa gente que o Podolsky é só a ponta do icebergue de seres humanos muito queridos.

Embora eu possa adquirir cidadania e passaporte e me tornar argentina oficialmente em qualquer dia que decidir, desde o início dos jogos a minha simpatia pendia para o lado da Alemanha. A língua é legal, os filmes são legais, as cervejas são legais e uma cidade que Bowie ama só pode ser uma boa cidade. Goethe, meu coração era seu muito antes dos seus meninos dançarem Tieta.

Decidida a torcer, me vesti de preto, coloquei meu casaquinho amarelo e me dirigi ao maior telão da cidade. Mal tinha chegado lá, enquanto ainda analisava mentalmente a fila da bebida, uma menina visivelmente bêbada põe um braço ao redor dos meus ombros e diz: “não, não, você não pode ficar assim!”. Antes que eu perceba, fui coroada com flores pretas, amarelas e vermelhas feitas de plástico; estou camuflada.

Estou também muito bem ensaiada, afinal, cinco dias antes tive a chance de ouvir a música de comemoração deles pelo menos umas catorze vezes. Cada vez que um coro de “aleeeee, aleeeee, super Deutschland, super Deutshland” irrompe, eu me junto como se não tivesse ouvido seis piadas sobre ser brasileira em 48 horas. Se precisar me justificar, estou aqui praticando jornalismo gonzo, sou Hunter S. Thompson vivendo com os Hells Angels.

Em algum ponto do segundo tempo, um menino muito loiro, muito bêbado e pouco mais alto que eu se aproxima e desanda a falar em um alemão impossível. Sorrio, digo que até falo alemão, mas não consigo entender nada. “I’m drunk, I’m sorry, but you’re beautiful.” Se esse alemãozinho estivesse no Brasil nessas últimas semanas, já teria feito bem mais que sete pontos.

Converso mais um pouco, ganho uma cerveja e sou apresentada aos amigos dele, um casal de meninos e a irmãzinha de um deles, um cara com a americana que ele achou ali na multidão e uma garota magrinha e loira, minha nova melhor amiga pela próxima hora. Assim que começa a próxima música, ela me dá o braço e balançamos juntas. Quando a argentina chega perto, ela aperta minha mão; quando tudo fica tenso, nos aproximamos e quando finalmente gritam gol, ela pula no meu pescoço. Nos conhecemos faz no máximo cinco minutos, mas quem se importa?

Quando começa uma música mais elaborada, que eu já ouvi, mas não sei cantar, um dos meninos atrás de mim e a irmãzinha do namorado dele me ensinam a letra. Ela me pede para abaixar e trança meu cabelo igual ao dela, sem derrubar a coroa de flores.

Quando finalmente (finalmente! todo jogo dessa copa teve que ter duzentos minutos?) acaba, tudo é silêncio por uns 2 segundos. Os dois segundos antes da ficha cair. E a primeira coisa que eu vi quando a Alemanha foi campeã foi um beijo gay. Os meninos comigo se beijaram, se abraçaram, um deles chorava sem parar. Daí eu percebi a quantidade de casais gays em volta de mim. A quantidade de homens se abraçando e beijando e chorando sem nem olhar pro lado, sem pensar duas vezes sobre quem eram, o que eram, o que faziam. Faz só 70 anos, me impressiona de uma forma boa que nem passe pela cabeça deles que podem não ser amados por esse país.

Teve muito beijo gay, mas teve ainda mais bromance. Teve selinhos e abraços e lágrimas. Eu, a garotinha e minha nova amiga, batíamos palmas e pulávamos e nos beijamos também, é o beijaço da vitória da Alemanha.

Eu sei que passo perfeitamente por alemã. Eu sei que tenho cabelo loiro e olhos verdes e fica fácil ser adotada dessa forma. Sei que judaísmo não imprime um aviso na minha testa embora eu mesma tenha imprimido símbolos na minha pele. Sei que é só um jogo de futebol. Ainda assim, ainda com todo ceticismo que nunca me abandona, não consegui não me sentir feliz, não ter um pouco de fé na humanidade, com uma Alemanha tão disposta a aceitar, tão disposta a colocar flores na cabeça de qualquer uma e dizer “vem cá, mesmo antes de perguntar seu nome, você é uma de nós”. Que em um lugar de público aberto, heterogêneo, ninguém olhe duas vezes para homens que se beijam.

No caminho para o metrô fui abraçada mais dezenas de vezes. Devo ter dado um selinho para cada gol que a Alemanha já fez na história das copas. Cheguei no quarto, abri a internet e ainda me deparei com o meme do Podolsky brasileiro. Olhando pela janela eu tinha plena certeza de que a América Latina é aqui.

Eu não ligo para futebol. Enquanto o Brasil perdia de sete eu falava de Bergman com o americano bonitinho. Mas preciso agradecer a essa copa, pela socialização permitida, pelas cervejas de graça e por ter visto tanta paixão em cantos do mundo que eu não esperava. Partiu meu coração o clima de luto em Sarajevo depois do jogo com a Nigéria, mas fui recompensada com a simpatia e acolhimento infinito dos alemães. Pode ser tudo mentira, pode ser tudo o mesmo romantismo barato e descartável do passeio de mãos dadas para ver o castelo de Praga à noite: ele vai embora, e você fica sem nada além de uma dor de garganta, porque aquilo nunca foi de verdade. Mas há algo de muito irresistível nas mentiras do romantismo barato.