A humanidade tem fetiche pela autodestruição. Adoramos ver a civilização reduzida às cinzas por meio de catástrofes naturais (Impacto Profundo, Amageddon), monstros gigantes (Godzilla, Círculo de Fogo), seres de outros planetas (Independence Day, Distrito 9) ou epidemias letais (Extermínio, Ensaio Sobre a Cegueira). Quanto mais sofrido for nosso fim, mais nos divertimos assistindo; quanto mais realista for a construção imagética, mais nos prendemos à trama. O gênero faz tanto sucesso que nunca esteve preso às limitações tecnológicas, e criatividade não faltou nos primórdios do Cinema para nos trazer esse tipo de aventura (O Dia Em que a Terra Parou, Guerra dos Mundos), com resultados mais ou menos toscos, refeitos em tempos mais recentes com toda a tecnologia que se tinha direito.

A história de O Planeta dos Macacos firmou-se no topo dos sci-fis distópicos desde seu primeiro filme, lá em 1968, com Charlton Heston gritando “Tire suas patas fedorentas de mim, seu macaco desgraçado!” e o desesperador final em que os destroços da estátua da Liberdade são encontrados na praia. Nem H.G. Wells, nem George Orwell teriam escrito final melhor.

Como de praxe em Hollywood, o sucesso da estreia transformou o filme em franquia para o Cinema e televisão, com continuações de qualidade cada vez mais duvidosas, até a abominável versão de Tim Burton em 2001, estrelada por Mark Wahlberg – um filme tão ruim que não merece mais linhas nessa crítica. Em 2011, contudo, “comemorando” os dez anos da bomba de Burton, a 20° Century Fox, detentora dos direitos, decidiu dar um reboot na história, e, sob a pena de Rick Jaffa e Amanda Silver e a câmera de Rupert Wyatt, surgiu O Planeta dos Macacos: A Origem.

Numa trama muito mais complexa, descobrimos como teve início o processo de transformação dos símios, que se potencializaram com o efeito colateral de uma droga originalmente desenvolvida para o tratamento de Alzheimer e testada em macacos. Nessa emocionante história, destacaram-se James Franco como Will e seu macaco de estimação, Caesar (Andy Serkis), que se tornaria o líder da revolução símia – com a fabulosa cena em que grita “Não!” ao humano explorador, uma releitura da cena de Charlton Heston no filme original (veja aqui).

Em Planeta dos Macacos: O Confronto1 trocou-se o diretor, agora Matt Reeves, e Mark Bomback somou-se ao time de roteiristas. James Franco saiu e mais dinheirinho entrou, num orçamento acima dos US$150 milhões. O principal, contudo, é que a evolução da espécie símia virou revolução, e o que não mudou em relação ao primeiro filme foi a atmosfera distópica e a mensagem melancólica sobre a falta de capacidade humana em conviver harmoniosamente com as diferenças, especialmente as naturais, e sobre nossa violência intrínseca.

A exemplo de outros filmes do gênero, o filme começa nos apresentando uma colagem de notícias sobre a ruína da humanidade, contaminada pelo mesmo vírus que potencializou alguns primatas. As nações se esfacelaram, as cidades foram perdidas e o que restou da raça humana está em pequenas comunidades que se mantêm fortemente protegidas e em condições precárias. Os símios também se organizaram em bandos, separados dos humanos, e nesse cenário ficcional de proporções globais a trama é sábia em seguir acompanhando o líder Caesar, focando o encontro de sua tribo, que habita o bosque Muir, e os humanos liderados por Dreyfus (Gary Oldman still overacting) que estão do outro lado da baía de São Francisco (EUA), sem saber da existência um do outro.

Com mais dinheiro no orçamento (quase o dobro do filme de 2011), a produção aprimorou os efeitos visuais, que já eram bem surpreendentes e foram indicados ao Oscar da categoria. O sistema de captação de movimentos (motion capture, apresentado neste vídeo) apresenta nuances de textura, coloração e iluminação na pelugem dos animais como nunca antes vistas, e com a poderosa atuação de Andy Serkis, experiente em símios2, o líder Caesar se torna ainda mais intimidador e profundo, firmando-se como um dos antagonistas mais interessantes dos últimos anos no Cinema blockbuster.

Interessantes também são as subtramas que, bem trabalhadas, deixam o “núcleo símio” mais complexo, somando um clã e uma família ao líder Caesar. Na parte dos humanos, contudo, há o desperdício de Keri Russell (The Americans), uma boa atriz num papel muito secundário. De estranho, apenas que não só Caesar fale inglês, cuja situação é justificável pelo seu convívio com o doutor Rodman (James Franco) no primeiro filme, mas todos os macacos, que são, inclusive, alfabetizados na língua, conquanto sem nunca deixar de se comunicar também com os gestos tradicionais da espécie.

DAWN-PLANET-APES-SFX
Andy Sarkis encarna belamente o líder Caesar. O ator também foi King Kong (2005) e Smeagle em O Senhor dos Anéis (2003).

Um ponto a ressaltar na direção de Matt Reeves é sua capacidade em surpreender e fugir dos lugares-comuns em que têm caído os atuais blockbusters. Aqui o diretor consegue escapar de todos os erros e clichês cometidos, por exemplo, por Gareth Edwards em Godzilla, que não só gastou muito dinheiro para nos trazer uma história insossa, como desperdiçou grandes atores (como Bryan Cranston e Juliette Binoche) e até um bom personagem: o monstro!

Nesse novo Planeta dos Macacos, Matt Reeves sabe tanto utilizar seus macacos quanto seus humanos, não perde a mão nas subtramas, nos dá belíssimos takes (destaque para a cena de batalha onde uma câmera é posicionada sobre um tanque de guerra em movimento giratório) e ainda faz divertidas referências tanto a filmes de gênero (repare na trilha sonora, que lembra 2001: Uma Odisseia no Espaço) quanto a outras obras do Cinema, como O Rei Leão (com o “tio” traidor, originalmente de Hamlet), John Ford (na primeira cena de Gary Oldman, indo porta afora, similar ao belíssimo começo de Rastros de Ódio) e até uma alegoria da famosa foto (encenada) de Dimitri Baltermants, da chegada dos russos à Berlin na II Guerra (veja aqui), com um macaco subindo na bandeira americana enquanto ao fundo vê-se a turba de símios indo à conquista do vilarejo humano (imagem em destaque no post)3.

O que talvez faça de Planeta dos Macacos um ícone entre os sci-fis distópicos é sua habilidade, pelo menos nesses dois últimos filmes e no original, em agregar tantos elementos conceituais: pensando em termos evolucionistas, macacos são humanos um degrau abaixo, porém, quando esses animais se potencializam, há um revés na cadeia evolutiva e as consequências são imprevisíveis. Bons criadores de histórias vão trabalhar justamente com essa imprevisibilidade, construindo roteiros que nos surpreendam a cada passo do caminho, fieis ao mínimo de plausibilidade numa situação semelhante e, principalmente, sem ser paternalista com a audiência.

Esse filme não foge às regras dos blockbusters, atraindo público (e muito, pois têm sido um sucesso de bilheteria) pelos efeitos especiais e explosões, tiros e destruições. É Cinema de entretenimento, mas do melhor tipo, pois feito com qualidade tanto técnica e dramatúrgica quanto conceitual e de atuações – e posso dizer que tem macaco nesse filme atuando muito melhor do que algumas estrelas de Hollywood.

  1. Os títulos originais, em inglês, são muito melhores e fazem mais sentido, onde o Rise do primeiro filme e o Dawn do segundo representam um processo civilizatório
  2. Além de ter feito Caesar no filme de 2011, o ator também foi King Kong, no remake de Peter Jackson, em 2005
  3. Mais cenas de making of aqui