Faz quinze dias que eu voltei para casa. Quinze dias que durmo na minha própria cama, alimento meus gatos, lavo minha louça e tenho que me preocupar com coisas tipo dar um jeito na vida, arranjar mais um emprego, tentar não atrasar muito os livros da biblioteca. É engraçado isso de ter uma vida normal, cotidiana. Nesse tempo que passei longe, isso deixou de ser automático. Deixou de ser água.

Tenho estranhado muito a pressão do meu chuveiro. Ele sempre foi assim? Quebrou enquanto eu estava longe? É só porque está frio e preciso manter a água quase fechada para não congelar? Esses livros na estante já estavam com a lombada tão queimada? Será que preciso comprar uma cortina? Será que eles sempre estiveram queimando, eu só não reparei?

Eu agradeço a Flip por ter oferecido uma rede de amortecimento para a queda. Cheguei em um domingo e três dias depois, antes que tivesse que enfrentar compras de supermercado, estava em Paraty. Já ouvi algumas pessoas comentarem lá como andar no plano parece estranho depois das pedras desencontradas. Enquanto estamos nas pedras é dolorido, incômodo, toda nossa atenção tem que ser empregada para não quebrar uma perna. E quando se sobe na calçada, quando finalmente há um pedaço de asfalto, a sensação é de estranheza em algo que deveria ser familiar. Me sinto exatamente assim voltando para casa.

Nos últimos dias eu me perguntava se não sentiria alívio de ter uma rotina, se não sentia saudades da familiaridade, do cotidiano. Não sei responder ainda se não sentia, por enquanto parece estranho. Parece estranho que eu mande mensagem e as pessoas me respondam no mesmo minuto e não cinco horas depois. Parece estranho poder confiar em uma repetição dos eventos, que terças e quintas estarei no ballet, que sextas à tarde tenho aula. De repente, me vejo prestando uma enorme atenção em coisas que deveriam vir a mim com a naturalidade das coisas que não se esquecem. Como andar de bicicleta.
Não quero dizer que seja ruim. Acho que pode ter aí alguma coisa valiosa, ou ao menos interessante. Como se de repente eu prestasse atenção no movimento muscular dos meus pés quando andam, no ângulo de balanço dos meus braços, em qual o movimento que meus tendões realizam quando decido virar a página de um livro. Como se a água tivesse sido posta no microscópio e agora, ao invés de ser um peixe que nada sem consciência de seu ambiente, fico pensando se deveria me desviar dos átomos.
A referência não é gratuita. Nem estou aqui citando David Foster Wallace só para ainda parecer descolada e pós-moderna agora que não posso dizer coisas como “noite passada na Bósnia”, é porque eu gosto muito da metáfora da vida cotidiana como algo em que estamos imersos e navegamos sem notar, até a hora que somos retirados dela e jogados de novo.

Será que se eu tirar um peixe do aquário e o devolver o sentimento dele vai ser apenas alívio ou por alguns segundos ele vai pensar “Onde estou? O que é isso? Que coisa molhada é essa?” Será que outras pessoas voltam para casa depois de longas ausências e simplesmente se adaptam sem estranhar? Não param em pleno ponto de ônibus da Consolação, encarando o painel que diz que meu ônibus chega em sete minutos e pensam “para onde vou mesmo? Qual o caminho desse ônibus?”

Eu falei que a Flip foi um amortecimento. Uns quatro dias de realidade mais legal que a realidade cotidiana que eu ganhei antes de ter que voltar mesmo. Mas ela também me deu alguma companhia nessa estranheza de como as coisas realmente são, eu acho. Nos despedimos de pessoas que moram longe, fomos jantar mais um dia como se a vida de lá pudesse ser estendida para São Paulo, como se por mais 24 horas a gente pudesse esquecer que pessoas moram longe, que temos dificuldade de encontrar mesmo quem mora perto, que não estaremos enchendo a cara de Gabriela por quatro noites seguidas nos próximos onze meses.

Acho que alguns arranjos parecem tão naturais, tão desejáveis, que quando somos arrancados deles tudo parece um pouco sem sentido. Essa coisa de acordar todo dia na mesma cama, de entender a língua e poder fazer planos a longo prazo me parece estranha, parece um pouco contra minha própria natureza. Eu sempre tenho um pouco a sensação de que vida é o que acontece lá fora, por aqui eu só estou matando tempo.
Mas falei lá em cima que desconforto pode ser bom. Que estar em uma situação que parece estrangeira pode ser interessante. Essa coluna toda só existe porque eu estava por aí estranhando coisas, falando sobre o que eu via quando estava fora do habitat natural, das coisas que me senti impelida a fazer, dos abismos que pulei, só porque não estava em casa. Mas agora voltei e São Paulo me parece mais aterrorizante que Belgrado e posso continuar falando de ver as coisas com essa curiosidade de fora e estranhando quando gente em uma festa sabe por onde eu andei.

Aposto que o senhor editor desse site ficaria mais feliz de não ter que editar mais um monte de textos sem sentido sobre gente se jogando de penhascos. Para a infelicidade dele, ainda estou achando divertido falar sobre o mundo e as coisas que eu não conheço e São Paulo também é o mundo. E se eu de repente voltar a sentir que é água, tem todas aquelas histórias velhas sobre como fui roubada em um país sem propriedade privada e tive que fazer uma reconstituição criminal no meio da madrugada.