No último domingo saíram os vencedores do Hugo, um dos principais prêmios da ficção científica, e sem muita surpresa Ancillary Justice levou mais uma vez. Com isso, a escritora Ann Leckie terá que abrir espaço na prateleira, afastando um pouco o Nebula, o BFSA, o Arthur C. Clarke e o Locus, todos eles acumulados em reconhecimento ao seu primeiro romance.

(Aviso logo: o livro não tem tradução. Fica a sugestão para as editoras que quiserem se arriscar com um cenário espacial. É difícil, eu sei, mas melhor oportunidade não vão ter. )(Editado:A Editora Aleph anunciou a compra dos direitos de tradução, ainda não há data definida para lançamento)

A princípio, a fórmula do livro não parece excepcional, nem especialmente destinada ao sucesso. Começa com um fundo tradicional da ficção científica, um futuro distante em que a humanidade colonizou outros planetas, em muitos sistemas solares longínquos, e em que as disputas geopolíticas foram elevadas a um patamar interplanetário. Adiciona aos poucos as inteligências artificiais, que beiram a onisciência, sem perderem totalmente a empatia e o senso de liberdade. Por fim, cobre tudo com preocupações antropológicas.

Parece simples, mas o segredo está no ponto. O uso que Leckie faz das inteligências artificiais (IAs) é ilustrativo. Faz muitas décadas que a ideia foi introduzida na ficção, mas a abordagem mais comum continua sendo a do computador maluco que quer matar a todos, fujam. Numa perspectiva bem diferente, em Ancillary Justice as IAs têm papel central e são tratadas como personagens, de modo semelhante ao que Ian Banks fazia em seus romances do cenário da Cultura.

A principal inovação de Leckie está no uso dos “ancilares”: corpos humanos, geralmente de criminosos ou inimigos políticos do Império, cujas mentes são substituídas e integradas a uma IA. O aspecto macabro da invenção fica de lado – talvez seja explorado em outro livro da série – e o foco por enquanto são as possibilidades novas de experiência. A escritora faz um ótimo trabalho em representar um personagem, uma IA, que é capaz de observar os mesmos eventos (ou eventos distantes) por vários corpos diferentes.

Existe, além disso, uma questão muito interessante de identidade das IAs, que se escalonam em níveis distintos, mas sobrepostos. Por exemplo, One Esk, um dos personagens principais da primeira parte do livro, é um conjunto de ancilares. Apesar de ser uma derivação de uma IA mais ampla, chamada Justice of Toren, e apesar de se compreender como parte dessa IA, ela ao mesmo tempo tem um senso de identidade próprio. Do mesmo modo, cada um dos ancilares que compõem One Esk (chamados One Esk One, One Esk Two, etc) é capaz  de pensamento independente. Pode parecer um processo esquizofrênico, mas todas essas relações hierárquicas são bastante naturais para One Esk, e assim soam ao leitor.

A história começa com dois fios distintos. Num deles, One Esk acompanha a missão de pacificação de um planeta recentemente anexado ao Império Radch. Fala-se bastante da relação entre a cultura local e a imperial, num modelo que, como a própria Leckie admite, baseou-se no Império Romano. A outra linha narrativa, mais avançada no tempo, mostra o sobrevivente de um acidente que teria acontecido durante a missão – quem é esse sobrevivente é um dos mistérios que impulsionam o livro. O artifício da divisão em duas linhas funciona bem para que Leckie introduza aos poucos as informações do cenário, enquanto a segunda linha, que depois se torna a única, ganha corpo.

Logo no início da narrativa fica evidente um recurso de estilo que angariou a simpatia geral e foi provavelmente o ponto mais comentado a respeito do livro: o uso do pronome feminino como padrão. A lógica interna é que o Império Radch não reconhece distinções de gênero entre seus cidadãos, e que mesmo a língua oficial do Radch não admite pronomes sexuados. Na falta de uma equivalência apropriada no inglês, adota-se, então, o feminino. O artifício gera certa confusão a princípio, é verdade, mas é interessante observar que depois de cinquenta ou cem páginas o desconforto passa. Não têm gênero e pronto. (Imagino uma eventual adaptação para o cinema, todo o elenco com aparência andrógina.)

Para citar uma última questão cultural que está no cerne da trama: o imperialismo do Radch representa o conflito clássico entre civilização e barbárie. Até que ponto o interesse do Radch de incorporar outros sistemas planetários ao Império, e assim elevá-los a uma “cultura superior”, justifica a violência das anexações? Trata-se de uma questão sempre pertinente, e que vira a Fundação de Asimov pelo avesso.

A múltipla aclamação mostra que o livro conciliou a admiração de críticos, escritores e leitores. De fato, Ancillary Justice é um daqueles casos raros que encontra um perfeito caminho do meio, em diversas dimensões: repete temas clássicos do gênero, mas introduz variações próprias; traz inovações estilísticas, mas não perde a simplicidade do discurso; e, acima de tudo, cria uma trama simples o bastante para que haja um herói, mas complexa o bastante para que as suas escolhas não pareçam óbvias.

Talvez a trama seja estranha ou simples demais para alguns leitores, que preferirão enredos mais realistas ou convolutos, mas isso não tira o mérito de Ann Leckie por ter criado uma obra que seja tão pura ficção científica e ainda assim capaz de alcançar um público amplo. No geral, encontra-se a melhor comparação no filme Gravidade: em muitos pontos a história pode soar inverossímil ou absurdamente improvável, mas às vezes a simplificação é a base para o espetáculo.

(O próximo livro da série, Ancillary Sword, será lançado em 7 de outubro.)