O pintassilgo chegou às livrarias brasileiras há pouco menos de uma semana, após muito barulho no exterior. Não à toa, é claro: ficou quase um ano na lista de mais vendidos do New York Times, foi vencedor do Pulitzer – e possui 728 páginas. Um autêntico calhamaço, esse livro de Donna Tartt. E faz jus a toda a repercussão que recebeu lá fora e que com certeza terá por aqui nos próximos meses.

A história gira em torno do narrador, Theo Decker, garoto que perdeu a mãe de maneira trágica e abrupta, ligado pelo acidente a uma pintura holandesa chamada “O pintassilgo”. É complicado explicar qual (ou quais) o(s) segredo(s) por trás do sucesso do livro. O mais direto que posso, e consigo, ser é falar sobre a narrativa de Donna Tartt.

O romance se inicia como uma carta de amor às artes e a Nova York, principal cenário da jornada de Theo, e se desdobra em diversos acontecimentos, que capturam o leitor logo nas primeiras páginas. A trajetória ajuda (saindo do modo compacto de explicação e me prolongando) à medida que presenciamos momentos cruciais da formação de Theo Decker: a adolescência sem a mãe, as fugas etílicas com auxílio de seu melhor amigo Boris (que lhe dá o apelido “Potter”), a ligação dele com cada um dos personagens espalhados pelo livro, sua inteligência mal utilizada, tudo isso captura quem lê O pintassilgo.

O detalhe está em como todos são capturados. Tartt não utiliza o caminho fácil dos ganchos em finais de capítulos, com revelações ou momentos chocantes, para prender o leitor. A escritora te mantém preso pelo seu apuro narrativo. E também pelas referências sutis, partindo de um grande escritor para um astro da música pop dos anos 2000, sem dizer “olhe como é legal essa comparação, você a reconhece”. Não estranhe se, em uma sentada, cem, duzentas páginas forem consumidas.

Por mais que na segunda e terceira parte já dê para sacar o que está por vir, não desistimos da leitura: queremos continuar e nos surpreender com o que pode contrariar o que esperamos. O livro ainda conta com uma mudança de gêneros, percorrendo o famoso “romance de formação”, flertando com o gonzo, atirando-se sem medo no suspense, enquanto mergulha argutamente em momentos inspirados nas obras de Dostoiévski. Donna Tartt não parece querer se encaixar aqui ou ali; quer é estar livre, diferente do pássaro da pintura preso a um poleiro por uma corrente.

Mesmo que carregue o nome da pintura no título, o quadro em si é como uma sombra, que vem e volta na narrativa, ou como um McGuffin. Não é o que sustenta o romance; ao menos, não como um todo. Em certos momentos dá para esquecer a existência dele e das circunstâncias que levaram o protagonista a estar com ele  tanto que poderíamos muito bem mudar o título do livro para “A vida de Theo Decker”, o que não seria nada charmoso.

A vida de Theo Decker passa por diversos cenários e dificuldades nas cinco partes que dividem o livro. As duas primeiras são a adolescência e o crescimento do personagem e nelas se vai construindo sua personalidade calmamente, sem necessitar de exposições nos diálogos ou divagações do narrador. Ele é totalmente tridimensional e é isso que torna O pintassilgo uma história tão magnética. Não se pode julgá-lo por uns deslizes aqui e ali: ele é um ser humano. Essa humanidade também tira um pouco o ar de sobrevivência e bom-caratismo que costumam ter os personagens órfãos. Não são poucas as situações e decisões que não se justificam por Theo ter perdido os pais. Várias outras poderiam moldá-lo num mau caráter.

O espaço dos demais personagens também é outro mérito de Donna Tartt a ser lembrado: como vêm e vão personagens incríveis, como a morte deles pesa, e como a volta de outros revolta, ou como a falsa inocência ou a esperteza em demasia desperta sentimentos no leitor. Hobie e seu jeito calmo, cuidadoso e caloroso. A paixão musical de Pippa e as descrições de Theo que nos fazem querer conhecê-la, mostrar pra ela o quanto ele a ama. E, principalmente, Boris e seu jeito às vezes caipira, às vezes filósofo, mas sempre dono de um grande coração. Personagens incríveis dentro das suas esferas. Difícil não falar com tanto clamor do livro.

Voltemos a Theo Decker e à formidável construção de sua personalidade. Lacônico, depressivo, porém muito egoísta. O pintassilgo é sobre o egoísmo de seu herói; a autodepreciação mascara esse traço marcante de Theo, transformando-o também no vilão em certos momentos. Não que ele pratique maldades injustificadas  apesar de que toda maldade no mundo real possa ser justificada. Em dado momento do livro Boris faz uma analogia sobre O Idiota (olha Dostoiévski sendo jogado na cara!), que vem bem a calhar não só com aquele momento da história, mas com a vida toda do protagonista: o que é ser bom e o que é ser mau? Às vezes, prejudicamos pessoas pensando no bem de outras.

Theo culpa algumas pessoas, exime outras e, mesmo admitindo alguns erros, prefere apontar para as fraquezas e defeitos dos outros. É irritante perceber o quanto ele só admite seus erros no limite de um acontecimento. Ora, se em um momento ele começa a falar de suas dependências com remédios trazendo as esfarrapadas sentenças “sou controlado, sei quando parar, etc.”, ele passa depois a, de maneira hipócrita, julgar Boris por recorrer a essas mesmas desculpas páginas depois. Como se fosse superior. Por outro lado, sua paixão pelas antiguidades, por Pippa, pela sua mãe e a admiração por Hobie e Boris o fazem também um personagem cativante.

Sei que é ambíguo e talvez contraditório afirmar isso, mas não há melhor maneira de descrever Theo. Ele é o coração do livro, quer gostemos ou não dele (e é sempre possível se divertir com Boris e esquecer as chatices do protagonista). Por isso O pintassilgo demorou cerca de dez anos para ser concluído: Donna Tartt investiu bem todo esse tempo ao construir uma história cativante, de apuro narrativo  leve e orgânico  e trazer à luz um personagem fascinante como Theo Decker e uma viagem ao mundo das artes de arrancar o fôlego.