É realmente muito bom ver que Milan Kundera, depois de dez anos sem publicar livros de ficção, still got it. O espaço de tempo decorrido desde sua última publicação, como é de praxe, foi sendo preenchido por um conjunto de expectativas que crescia a cada ano, e por albergar sentimentos tão dúbios como esse, qualquer nova publicação já nascia sob o estigma de um potencial desapontamento. Se é verdade que todo livro vem ao mundo em condições parecidas, no caso de Kundera é forçoso reconhecer que uma década é um tempo bastante longo, e que a reputação do escritor contribuiu para engrandecer as especulações sobre o próximo livro e se ele estaria à altura de suas obras anteriores.

A despeito de toda a espera, o resultado foi positivo: A festa da insignificância traz tudo aquilo que os leitores de Kundera se acostumaram a admirar. Trata-se de um livro dotado de certo frescor espiritual e de uma narrativa breve mas contundente, que não onera sua cadência pela interferência idiossincrática do autor, mas que nem por isso deixa de ter marcas que talvez pudéssemos chamar de “kunderianas”. Várias situações, ocorrendo de forma paralela e interseccionada, vão sendo entretecidas para dar corpo a um conjunto de questões que tem tanto de literatura quanto tem de filosofia, afinal, para Kundera, falar de uma é oportunidade para falar também da outra.

O capítulo de abertura já nos insere na atmosfera do livro. Alain, um dos personagens, passeia por Paris numa manhã de sol, observando as garotas que por ele passam. Percebendo que um dos novos recursos provocativos delas é a mostra do umbigo, Alain reflete sobre as razões que fizeram com que os seios, as coxas e a bunda ganhassem atributos eróticos, para, então, tentar entender por que esses atributos foram agora estendidos ao umbigo. As reflexões têm muito do típico kitsch do escritor:

o comprimento das coxas é a imagem metafórica do caminho, longo e fascinante (é por isso que as coxas devem ser longas), que leva à realização erótica; de fato, pensou Alain, mesmo no meio do coito, o comprimento das coxas empresta à mulher a magia romântica do inacessível. (p. 9)

Ante uma tal reflexão, como duvidar que estamos na presença da escritura de Kundera? O erotismo de Sabine e seu chapéu, em A insustentável leveza do ser, não encontra aqui um de seus pares? As estratégias amorosas de Madame de T., narradas em A lentidão, não se encontram também aqui, ainda que sob outra forma? Ao mesmo tempo, a mistura do pensamento metódico com uma reflexão irreverente encerra, ela própria, uma das peculiaridades do modo com que Kundera enxerga as coisas e busca ler o mundo: combinando a seriedade e sisudez de um pensador calejado com temas e questões que talvez pudéssemos ter como ridículos, secundários ou mesmo bizarros. De fato, tentar estabelecer uma cunha que separe questões “sérias” e questões “não sérias” na obra de Kundera seria extirpar-lhe sua própria dinâmica de constituição, pois é em parte essa mescla o que alimenta sua expressividade em termos de arte, literatura, filosofia etc.

A exploração sob essa perspectiva opera, em A festa da insignificância, a partir de vários personagens: Alain, D’Ardelo, Ramon, Charles e Calibã, dentre outros. Cada um deles vive situações que são dissecadas por Kundera ao longo do livro, e todas elas vão convergindo para um coquetel onde todos esses personagens se encontram. O encadeamento da trama, como é comum nos livros do escritor, tem papel secundário, pois mais vale enquanto oferece situações mais ou menos individuais que permitam a reflexão ou a exploração de alguma faceta ou aresta filosófica de alguma questão (vide sequência do umbigo, ou o caso da suicida mal-sucedida, ou das perdizes de Stálin, da garrafa de armanhaque sobre o armário etc.)

Com essa forma de narrar, o escritor deixa seus livros “arejados”, por assim dizer, sendo essa a condição para que o leitor acumule fôlego para os momentos mais carregados de elucubrações. Veja-se, por exemplo, uma outra passagem com Alain: ele andava pela rua quando se chocou com uma mulher que vinha na direção contrária, ao passo que pediu imediatamente desculpas a ela. Kundera se vale dessa situação para construir uma instigante ponderação:

Se sentir ou não se sentir culpado. Acho que tudo depende disso. A vida é uma luta de todos contra todos. É sabido. Mas como essa luta acontece numa sociedade mais ou menos civilizada? As pessoas não se podem atirar umas sobre as outras sempre que se encontram. Em vez disso, tentam jogar no outro o constrangimento da culpabilidade. Ganhará aquele que conseguir tornar o outro culpado. Perderá aquele que reconhecer sua culpa. Você vai pela rua, mergulhado em pensamentos. Em sua direção vem uma moça, como se estivesse sozinha no mundo, sem olhar para a esquerda nem para a direita, indo direto em frente. Vocês se esbarram. Eis o momento da verdade. Quem sai insultar o outro, e quem vai se desculpar? (p. 54)

A partir de uma situação específica da trama, o escritor vai construindo argumentos e colocações que o levam a considerar já não mais somente o personagem Alain, mas todos aqueles que vivem numa “sociedade mais ou menos civilizada”. A escalada analítica parte do próprio desenrolar do enredo para inferir considerações mais abrangentes, as quais, quem sabe possamos dizer, se referem à “condição humana”, por mais fugidio e evanescente que seja esse conceito. É possível encontrar essa ânsia e esse fôlego de descobrir e dissecar essa “condição” em vários dos livros de Kundera, seja em sua obra-prima A insustentável leveza do ser, seja em obras menos conhecidas, como Risíveis amores e A imortalidade, por exemplo.

Essa talvez seja a razão que ajuda a explicar o título do último romance. Uma fala de Ramon nos ajuda a introduzir essa interpretação:

– Há muito tempo, D’Ardelo, eu queria lhe falar de uma coisa. Do valor da insignificância. (…) A insignificância, meu amigo, é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre. Ela está presente mesmo ali onde ninguém quer vê-la: nos horrores, nas lutas sangrentas, nas piores desgraças. Isso exige muitas vezes coragem para reconhecê-la em condições tão dramáticas e para chamá-la pelo nome. Mas não se trata apenas de reconhecê-la, é preciso amar a insignificância, é preciso aprender a amá-la. Aqui, nesta parte, diante de nós, olhe, meu amigo, ela está presente com toda a sua evidência, com toda a sua inocência, com toda a sua beleza. Sim, sua beleza. Como você mesmo disse: a animação perfeita…e completamente inútil, as crianças rindo…sem saber por quê, não é lindo? Respire, D’Ardelo, meu amigo, respire essa insignificância que nos cerca, ela é a chave da sabedoria, ela é a chave do bom humor… (pp. 131-132)

A “insustentável leveza do ser” encontra um certo “alívio” na constatação da “insignificância” da existência. Pode parecer uma terrível constatação, pessimista (e quiçá desesperadora) pelos corolários que permite, mas, se considerarmos o tratamento cuidadoso e sensível que Kundera dá aos seus personagens (humano, por assim dizer) não creio que possamos ser tão categóricos nessa afirmação. Embora a insignificância permeie a existência, ela não deixa de ser, como o próprio título atesta, uma festa.

Ao fim e ao cabo, Alain e seus amigos, a despeito das rascantes constatações a que chegam, ainda conseguem achar motivos para rir e (tentar) beber armanhaques. Poderosas ondas de hedonismo se chocando contra penedos existencialistas, quem sabe essa seja uma imagem que expresse algumas das questões de A festa da insignificância, ou talvez mesmo boa parte da obra do escritor tcheco.