Ernest Hemingway é um daqueles escritores lendários. Prêmio Pulitzer em 1953 e Nobel de Literatura em 1954, é parte fundamental do cânone literário, tanto no âmbito da língua inglesa, quanto em âmbito universal. Tão (ou mais) marcante quanto sua literatura foi sua biografia: dirigiu uma ambulância da Cruz Vermelha durante a Primeira Guerra Mundial, viveu junto a outros escritores americanos expatriados em Paris (a famigerada Geração Perdida, descrita por Gertrud Stein), lutou pelos republicanos na Guerra Civil Espanhola e, após a derrota, mudou-se para Cuba. Em 1961 deu cabo de si mesmo com um rifle de caça.

Não obstante, não é um autor que pertence ao meu cânone pessoal. Li, já há alguns anos, O velho e o mar  a obra que lhe rendeu os prêmios todos  e um pedaço de Death in the Afternoon. Até há pouco, era só. Conhecia um pouco a partir de leituras que faziam referência a sua vida ou obra, especialmente os textos e entrevistas de sua filha Gloria. Esses dias, porém, em meio a uma indecisão profunda no tocante ao que ler, puxei O Sol também se levanta quase que aleatoriamente da prateleira.

O enredo chega a ser banal: um grupo de americanos e ingleses decide viajar de Paris para Pamplona, para as Festas de São Fermín, onde acontecem as famosas corridas de touro, além de touradas. Desocupados, boêmios e gastando sem dó nem piedade, eram remanescentes da Primeira Guerra Mundial, profundamente afetados por ela, de maneiras diversas. Jake Barnes, o protagonista, sofreu um ferimento na guerra que o tornou impotente. Também graças ao ferimento, conheceu e apaixonou-se por Lady Brett Ashley, prestes a divorciar-se e envolvida, à época retratada no livro, com quem quer que lhe aprouvesse. Uma dessas pessoas acaba por ser Robert Cohn, escritor judeu norte-americano e amigo de Barnes. Na viagem a Pamplona, que teria consequências trágicas para quase todos, juntam-se a eles Bill Gorton e Mike Campbell, o noivo de Brett.

São três partes. A primeira  que, confesso, quase me fez desistir, um tanto entediante  se passa em Paris, entre cafés e hotéis, apresenta o envolvimento abortado entre Jake e Lady Ashley e aponta para a visão que Hemingway tinha da Geração Perdida como dissoluta e estragada pela Guerra. A figura da mulher independente, hedonista e sexualmente liberta, representada por Brett, começa a ser desenhada aqui. Robert Cohn é introduzido como um personagem um pouco tolo, mas ainda assim com qualquer coisa de simpático.

Já na segunda parte o foco é a Festa de São Firmino, com descrições tão belas quanto cruentas dos eventos da festa, belas passagens que exaltam a ferocidade e a magnificência dos touros, a coragem e grandeza dos toureiros. Mike surge como um bêbado grosseiro e inconveniente, mas que estranhamente parece ser mais desejável do que Cohn, que torna-se cada vez mais repulsivo. Em oposição a ambos, surge a figura do jovem Pedro Romero, um toureiro másculo e habilidoso, por quem Brett imediatamente se interessa.

A terceira parte é um epílogo para a festa, o lamber das feridas. Bem menos agitada do que as outras, é digna da melancolia que, em minha cabeça, sempre atribuí ao autor.

Apesar de começar devagar, é impossível dizer que o livro é ruim. Trabalha com questões de gênero de um modo interessante, que eu não esperaria do “grande macho americano” que ele parecia tentar representar em sua vida: a impotência de Jake Barnes pode ser lida como uma homossexualidade latente, Cohn tem seu quê de feminino ao não suportar ver os cavalos mortos pelos touros, o que lhe opõe a Pedro Romero, que toma em suas próprias mãos a tarefa de arriscar-se para matar os ferozes animais. Brett é uma personagem andrógina  Romero o nota, percebendo certa assincronia entre a bela mulher que ela era e a aparência masculina que tinha, e ele perde um pouco de sua masculinidade ao ter um caso com ela, coisa que os espanhóis creditam a Jake, como uma forma de sabotagem. Mesmo as touradas e as corridas que, para além da tradição, são apresentadas como feitos de coragem e hombridade, em certo ponto são ditas como coisa bárbara, estúpida, essa de “morrer por diversão”.

Tenho, porém, minhas dificuldades para admitir que gostei da obra. A principal razão é a caracterização de Robert Cohn. Como eu disse, inicialmente ele só parece um tanto tolo, mas vai se tornando cada vez mais desprezível. E, quanto mais desprezível ele parece, mais é enfatizado o fato de ser judeu. Quando Mike, bêbado, o escorraça, usa seu judaísmo como argumento. Na verdade quando qualquer um dos personagens quer diminuí-lo, faz sempre questão de começar com o fato de ser judeu.

A novela é um roman à clef: eventos da vida de Hemingway, mal dissimulados na forma ficcional. Cohn é baseado em Harold Loeb, um judeu que foi um dos grandes amigos de Hemingway até que, justamente em uma viagem a Pamplona, perdeu não só a amizade de Hemingway, mas também de Laddy Duff  que havia sido sua amante e, além de um interesse romântico de Ernest, foi o modelo para Lady Brett Ashley. Pode ser, então, que a caracterização negativa de Cohn não seja, necessariamente, um sinal de antissemitismo da parte de Hemingway, e sim um rancor profundo com relação a Loeb, ou ainda uma forma de apontar e, veladamente, criticar esse preconceito.

Se o caso for de antissemitismo, real ou potencial, não é perdoável, nunca é. Literatura nunca é só literatura, como pretendem alguns. Mas reduzir Hemingway a um escritor antissemita, a um escritor homofóbico ou a um escritor misógino é um erro. Sua história pessoal é repleta de luta antifascista, ele nutria simpatias pelo comunismo, possivelmente tinha uma identidade de gênero problemática (mesmo que só interiormente) e, apesar de usar expressões que apontavam para algum grau de antissemitismo, tinha muitos amigos judeus e apelidou a si mesmo de “Hemingstein”.

Não consigo não me sentir incomodado ao ler que Robert Cohn, o judeu, é desprezível e tudo mais. Mas tento não deixar de lado o fato de que Hemingway era uma pessoa complexa, e sua literatura também, o que quer dizer que o que está explícito no livro pode não ser o que está realmente sendo dito.