Quando Sin City apareceu nos cinemas em 2005, as reações foram em geral bastante positivas (o filme atualmente tem 74% no Metacritic). Roger Ebert disse que, mais do que uma adaptação de quadrinhos, o filme era como uma história em quadrinhos ganhando vida e sendo injetada com esteroides. É inegável que Robert Rodriguez e Frank Miller haviam criado algo visualmente extraordinário. Chroma key (ou “tela verde/azul”) era até então mais uma ferramenta no arsenal de cineastas que trabalhavam com efeitos especiais, utilizada para ajudar a gerar ilusões e criar planos impossíveis (ou muito difíceis) de filmar, uma progressão de técnicas existentes desde a infância do cinema, como fundo projetado, matte etc.

Sin City fez algo diferente, utilizando a tela verde para gerar uma nova estética, uma realidade amplificada criada quase inteiramente na pós-produção. Não foi o primeiro filme a fazer isso, mas foi o primeiro que chamou a atenção do público o suficiente para semear empolgação sobre as possibilidades da técnica (Capitão Sky e o Mundo do Amanhã havia feito basicamente a mesma coisa, mas a recepção daquele filme foi tão morna que, um ano depois, ninguém parecia se lembrar disso). O que fez a diferença, obviamente, foi a adequação à fonte: como Ebert disse, o visual de Sin City fazia os painéis de Miller ganharem vida na frente de nossos olhos. Era algo que simplesmente fazia sentido nessa adaptação, de forma que é impossível pensar no filme sendo feito de outra forma.

O efeito de alto contraste utilizado por Miller em suas graphic novels era uma extrapolação de suas técnicas habituais, uma forma de adequar seu traço ao ambiente noir que ele havia criado. Miller não partia de um layout minimalista; ele desenhava tudo em detalhes e depois cobria cuidadosamente partes da imagem com nanquim e guache branca, de forma que o que restava era o mínimo possível para que a ilustração fosse compreendida, em um resultado literalmente monocromático (ou seja, tudo é totalmente preto ou totalmente branco, sem tons de cinza ou hachuras). Não era algo exatamente incomum em quadrinhos, mas fazia total sentido no contexto; Sin City era uma das HQs cuja arte complementava perfeitamente o texto para criar uma atmosfera única.

“Literalmente monocromático” é um termo que pode ser aplicado não apenas ao visual de Sin City, no entanto, e é aí que os problemas começam a surgir, tanto nos quadrinhos quanto na adaptação cinematográfica: os roteiros de Miller se utilizavam de arquétipos da literatura e do cinema noir para criar histórias que podem ser generosamente descritas como adolescentes, e talvez mais precisamente descritas como imbecis. O objetivo era levar esses arquétipos às suas últimas consequências, exagerando algo que já era exagerado, mas o resultado acabava frequentemente soando como paródia, algo que um moleque de 14 anos escreveria depois de passar anos trancado em um porão lendo nada além de Mickey Spillane, Dashiel Hammet e Raymond Chandler.

Todos os clichês da literatura “hard boiled” estão presentes em Sin City na forma menos sutil imaginável: as histórias invariavelmente envolvem anti-heróis violentos com um código de honra pessoal que se envolvem em tramas cheias de reviravoltas onde têm de lidar com criminosos inescrupulosos, figuras de poder corrompidas e mulheres que estão ali para ser salvas ou para revelarem-se como parte do esquema, descrevendo todos os procedimentos através de narrações incessantes. Até aí tudo bem; o problema não são os conceitos, e sim a execução. Enquanto os autores citados apresentavam uma visão de mundo cínica e pessimista, Miller cria um universo extremamente misantrópico, misógino e simplista.

Seus anti-heróis são basicamente psicopatas que resolvem 90% de seus problemas espancando ou matando pessoas. Quando suas personagens femininas não são vítimas que estão ali para serem brutalizadas, gerando motivação para o protagonista, elas fazem parte de uma comunidade de prostitutas cuja função é posar com pouca roupa e muitas armas (a mais perigosa delas é uma ninja, porque Frank Miller nunca encontrou uma história onde não pudesse enfiar ninjas de alguma forma). Essas prostitutas, somos constantemente informados, são perfeitamente capazes se defender, mas sempre acabam precisando da ajuda de um homem. (Na cabeça de Frank Miller, essa fantasia adolescente conta como feminismo.) Seus vilões não são apenas corruptos; eles são literalmente monstros, seu visual grotesco ilustrando suas preferências por pedofilia, canibalismo etc. A violência das cenas de ação chega a níveis tão cartunescos de exagero que podiam envolver animais antropomórficos usando produtos da ACME. Seus voice-overs têm analogias tão forçadas que meus olhos ficam constantemente querendo se revirar para dentro das próprias órbitas.

Lá se foram seis parágrafos e eu ainda nem comecei a falar do filme sobre o qual eu devia estar falando. A questão é que os problemas de Sin City – A Dama Fatal são os mesmos problemas de Sin City, mas de forma muito mais evidente. É uma sequência tão vazia que acaba prejudicando o original em retrospecto, trazendo à tona tudo que sempre foi nojento sobre essas histórias e adicionando óculos 3D. O problema principal é que, das três histórias presentes no longa, apenas a que dá o título ao filme é uma adaptação; as outras duas são contos originais, criados especialmente para o cinema. Isso é um problema sério, pois, nos últimos anos, Frank Miller tem se tornado uma espécie de paródia de si mesmo, sua sensibilidade conservadora e misantrópica atingindo níveis cada vez mais nonsense. Sua série All-Star Batman & Robin, ilustrada por Jim Lee, é a fonte do meme “I’m the goddamn Batman,” proveniente de um quadro onde o Cavaleiro das Trevas pergunta para o Menino Prodígio se ele é “retardado.” Sua graphic novel Holy Terror é talvez a representação mais simplista e racista do oriente médio já registrada em uma obra de ficção.

A Dama Fatal é uma das histórias mais icônicas de Sin City, e era óbvio desde o primeiro filme que uma possível sequência a envolveria de alguma forma. Apesar de não chegar no nível de That Yellow Bastard (provavelmente a única história do primeiro filme onde é possível se importar de verdade com os personagens), é uma narrativa relativamente envolvente, onde Dwight (Josh Brolin) se vê numa espiral descendente de traições após receber uma visita de seu passado na forma de Ava (Eva Green), a femme fatale quintessencial, que implora para que ele a ajude a se livrar de seu marido abusivo. É dolorosamente óbvio desde o começo que “nada é o que parece.” Ou seja, Ava está manipulando Dwight, assim como ela manipula todos os homens que cruzam seu caminho. Claro que no mundo de Frank Miller a única mulher com iniciativa é uma predadora inescrupulosa, mas a presença magnética de Eva Green no papel compensaria o gosto amargo da premissa mesmo que ela não estivesse constantemente nua na tela (e ela está, Para Nossa Alegria).

É uma história com algumas fagulhas de criatividade, apesar da dramatização deixar óbvios certos problemas estruturais que eram mais fáceis de relevar na página impressa. Uma subtrama envolvendo dois policiais, por exemplo (Jeremy Piven e Christopher Meloni), não chega em absolutamente lugar nenhum. Stacy Keach, irreconhecível debaixo de quilos de maquiagem que o fazem parecer um cruzamento de um vilão de Dick Tracy com uma pilha de gosma, tem uma ponta absolutamente irrelevante. As motivações são em geral nebulosas, o que faz com que o desfecho não funcione nem como a catarse-através-da-violência que é basicamente o único ponto de tudo que acontece nessas histórias. Ainda assim, trata-se incontestavelmente do ponto alto do filme. Os dois contos restantes são tão lineares e desprovidos de surpresas que é difícil de acreditar que eles foram roteirizados; parece que o Rodriguez decidiu filmar os outlines de Miller sem sequer tentar pensar em formas de adicionar complexidade aos procedimentos. Eu não estou exagerando quando digo que essas duas narrativas estão entre as mais simplórias que já vi na minha vida.

Na segunda história do filme, os talentos de Joseph Gordon-Levitt são completamente desperdiçados em mais um protagonista durão que descreve tudo em voice-overs hilariamente soturnos. Johnny é um jogador que nunca perde, o que é demonstrado quando ele parece saber exatamente qual máquina de caça-níqueis vai lhe dar o prêmio máximo imediatamente. Johnny entra em um jogo de pôquer underground promovido pelo senador Roarke (Powers Boothe), que não fica muito feliz quando inevitavelmente perde tudo de forma humilhante. Johnny é aconselhado por um policial participante do jogo a se mandar da cidade, mas ele ignora o conselho, mostrando uma arrogância que a priori soa como burrice. Quando Johnny é espancado, no entanto, seus motivos ficam claros, no único elemento dessa história que pode ser configurado como um spoiler. Será que ele utilizará sua sorte sobrenatural para armar um plano de vingança de forma criativa? Não, ele não fará isso. A história segue de forma preguiçosamente direta até um desfecho que até seria chocante se não fosse tão óbvio.

A última história acompanha Nancy (Jessica Alba), ainda a stripper mais popular da cidade apesar de nunca tirar a roupa no palco. Ela é ocasionalmente assombrada pelo fantasma de Hartigan (Bruce Willis, presente no pôster apesar de aparecer no filme por aproximadamente 30 segundos), o policial que a salvou do Bastardo Amarelo (Nick Stahl), o filho pedófilo do Senador Roarke. Stahl foi uma das coisas mais memoráveis do primeiro filme, e sua presença em retratos na sala de Roarke só deixa mais evidente o quanto tudo que está acontecendo neste é pouco interessante. É completamente absurdo que Roarke tenha retratos de seu filho tirados depois que este se tornou, nas palavras do próprio senador, uma aberração, o que deixa em evidência a falta de confiança que os autores têm em sua obra; referências ao primeiro filme são utilizadas mesmo quando não fazem o menor sentido.

Enquanto planeja se vingar de Roarke, Nancy está aos poucos ficando maluca, e seu show reflete isso, tornando-se cada vez mais selvagem (embora mantenha-se PG-13). O momento mais não intencionalmente hilário do filme é quando a Jessica Alba começa a narrar as coisas em um voice-over no velho estilo Sin City®; Rodriguez provavelmente percebeu isso e manteve esses voice-overs ao mínimo possível para que a história ainda pudesse ser caracterizada como parte do todo. Enfim, eventualmente Nancy corta o próprio rosto repetidamente, é promovida de “vítima loira” a “morena badass com cicatrizes” e finalmente parte em busca de vingança. Não há um incidente incitante para que ela decida se vingar, e não há nada de criativo na vingança em si. Ela simplesmente se alia a Marv (Mickey Rourke) e os dois matam um monte de gente. Fim.

O uso de Marv é uma boa representação da falta de imaginação que caracteriza a coisa toda. No primeiro filme ele até podia ser descrito como um personagem trágico, um homem nascido na época errada, blá blá blá. Aqui ele é meramente um acessório, uma arma que os protagonistas apontam na direção daquilo que (ou, mais frequentemente, de quem) querem destruir. É ele que estrela o prólogo, adaptado de uma das histórias curtas que Frank Miller escrevia como mera desculpa para desenhar. Mas, enquanto o prólogo do primeiro Sin City tinha algo parecido com uma reviravolta, esse é mais uma história simplória e esquelética que tenta gerar catarse ao igualar justiça com assassinato. O primeiro filme também tinha um epílogo, uma cena curta que retomava o matador de aluguel visto no prólogo; era um momento relativamente esperto (provavelmente ideia de Rodriguez) que dava um senso de unidade e conclusão a uma narrativa fragmentada. Em Sin City – A Dama Fatal não há nada parecido. O filme simplesmente para de existir no exato momento em que isso é possível, como se uma outra história fosse começar em seguida. Tudo que resta são os créditos e a sensação de que algo está faltando. Provavelmente um roteiro.

 

Avaliação: *1/2 (Uma estrela pela Eva Green e meia pelo humor não intencional.)