Um livro que eu gostaria de indicar para todo mundo – mesmo para quem viu o filme inspirado nele e o detestou – é Cloud Atlas, de David Mitchell. Não escondo de ninguém – alias, já falei a respeito disso numa ocasião anterior – o fervor quase religioso do meu amor por esse livro.

Adoraria que esta fosse uma coluna para avisar, em primeira mão, que a Companhia das Letras está prestes a lançar o romance no Brasil. Mas não é. Por enquanto, apenas os fãs de Infinite Jest, de David Foster Wallace (devidamente traduzido como Graça Infinita), estão autorizados a suspirarem de ansiedade pelo lançamento em poucas semanas. Quem é da turma do Mitchell, pode aguardar Cloud Atlas lendo Os mil outonos de Jacob de Zoet (que deve chegar às livrarias bem antes) ou apelar para a edição portuguesa, que descobri sem querer fuçando o Instagram dum amigo.

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Wolney Fernandes

Quero é falar do efeito Cloud Atlas em minhas últimas leituras: todos romances muito bons de escritoras que têm tudo para entrarem no rol dos meus autores favoritos, se é que ainda não estavam nessa lista. Mas, a fim de entender do que eu falo quando eu falo de “efeito Cloud Atlas“, é necessário que você tenha lido a resenha do Gigio para o livro (texto que, inclusive, me inspirou a perseverar na leitura). Ou, pelo menos, o seu segundo parágrafo:

O grande destaque de Cloud Atlas é sua estrutura formal: o livro é composto de seis histórias bem diferentes aninhadas umas dentro das outras. Para entender como isso foi feito por Mitchell, comece imaginando um primeiro volume aberto ao meio sobre uma mesa; sobre ele, coloque outros cincos livros, também abertos ao meio; depois feche tudo e comece sua leitura. O resultado final é que o leitor acompanha metade da primeira história, é interrompido, passa à segunda, é interrompido, e assim por diante. A história central, como se pode perceber nesse modelo imaginário, corre ininterruptamente, e vão se seguindo então os desfechos das demais.

Eu tentei reproduzir a imagem descrita por Gigio aqui em casa, com minhas últimas leituras, mas o máximo que consegui foi isso.

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Eles ficam assim, quando mais organizadinhos.

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Ah: assim, sim!

*

Um Cloud Atlas pessoal

Não foi de propósito. Não, eu não acordei um dia com a música “Tudo pela metade“, de Marisa Monte, no rádio-relógio e decidi “Já sei! Vou transformar as minhas leituras num Cloud Atlas pessoal!”. Ainda mais sabendo do risco de findar confundindo os livros.

Foi mais… ahn… natural que isso. Foi algo meio Calvin Harris em “Feel so close“, tal como escrevi em “Do que eu falo quando eu falo de Cloud Atlas” . Digo: quando a vida em sociedade precisa ser restringida ao mínimo possível – não o mínimo existencial1, mas o mínimo possível mesmo2 –, pelo menos a gente pode ler um pouco (pouco antes de dormir; enquanto caminha sozinho; durante o almoço/lanche/jantar) e se “sentir tão próximo” de quem nos indicou o livro. Simples, essa coisa de comunhão.

(p. 306/517)
(p. 306 de 517)

Dentes brancos, de Zadie Smith, foi uma indicação do Panhocawley, um grande amigo. Ele o adquiriu, em inglês, numa feira de troca de livros e o devorou em dois tempos, o que, para mim, foi um fator decisivo para tirar o livro da estante (e a poeira do livro) e engatar a leitura. E eu já tinha ouvido falar bem do título (numa palestra da universidade e numa coluna da Carol Bensimon). A vida dos imigrantes num subúrbio londrino e o embate entre gerações (a discussão “manter as raízes ou se misturar à terra estrangeira?” é muito parecida com o “estamos neste mundo mas a ele não pertencemos” que já ouvi tanto) são narrados tão gostosamente por Zadie que não tive escolha a não ser me apaixonar. Prontamente me lembrei de Dois irmãos, de Milton Hatoum, no que diz respeito à questão dos irmãos gêmeos – uma escolha imbecil é feita pelos parentes em ambos os romances – e, na comparação, não deu outra: a moça deu uma paulada no velhinho.

Porém, como o livro era grosso, decidi submetê-lo ao teste do abandono.

(p. 254/526, na Bernadette)
(p. 254 de 526, na Bernadette)

Foi mais ou menos na época em que o Gigio. estava empolgado com a leitura de A terra inteira e o céu infinito, de Ruth Ozeki, livro que eu leria de qualquer forma pela sua bela performance no Tournament of Books. Eu queria ser a pessoa com a qual ele comentaria o romance, então mergulhei de cara nessa alternância entre o diário de Nao (devidamente encadernado com a capa de uma antiga edição francesa de Em busca do tempo perdido) e a narrativa de Ruth (opa, homônima da escritora do livro, repararam?), que tenta descobrir se o volume (devidamente protegido, lacrado e vedado) chegou à praia de sua ilha como um dos destroços do tsunami causador do desastre de Fukushima. É como se as duas conversassem entre si e conversassem conosco. A sensação não poderia ser melhor.

(p. 257 de 517)
(p. 257 de 517)

Então, meio que do nada, O pintassilgo, de Donna Tartt, chegou às livrarias brasileiras causando um imenso furdunço: aparentemente, todo mundo estava lendo e exibindo o pintassilgo para os outros – uma tendência que alguns cientistas políticos apelidaram de “pintassilgostentação”. Submeti o livro da Ozeki ao teste do abandono, enquanto lia, na Bernadette, a amostra do tão comentado da Tartt. Quando recebi um exemplar de dois livros desta, no entanto, dei preferência ao mais antigo: A história secreta. E não foi apenas por gostar de seguir a ordem cronológica: um amigo fã da autora, Marco, me revelou que esse era o seu favorito dela (opinião compartilhada com seu namorado, Jack).

Comecei por esse romance, uma rememoração dos tempos de universidade por parte de um narrador não motivado pela mera nostalgia: foi nessa época, em meio aos estudos de grego clássico, com uma turma sui generis e para raros, além de um professor muito peculiar, que a sua vida mudou totalmente. Tanto pela disparidade em relação ao que costumava ser quando morava com os pais quanto pela influência do assassinato que ele e seus colegas cometeram. Após o Livro I (que narra seus tempos de universitário – como são bonitas as descrições do ambiente, em especial no que diz respeito à iluminação – e é concluído com a cena do homicídio, anunciado logo no início da obra), decidi fazer uma pausa para deixar o romance “respirar”.

(p. 164 de 308)
(p. 164 de 308)

Não nego que a decisão tenha sido influenciada pela chegada do Por escrito, de Elvira Vigna, um dos que eu mais estava aguardando. “Tuca, o teu”, dizia a dedicatória. Seria uma falta de respeito não começar a leitura imediatamente – mesmo havendo três livros excelentes pela metade, todos implorando para serem lidos até o finzinho, “que conversa é essa?”. É um típico romance dessa escritora: você começa e acha que não vai dar em nada – por que a narradora está remoendo a ausência de pinheirinhos nas calçadas? por que ela resmunga sobre isso e aquilo? – até que, BAM!, as coisas vão se encaixando. O casamento em Paris3, as histórias inventadas – “O Nelson Rodrigues possível.” –, a Curitiba inventada – tão melhor do que a “Curitiba perdida” à qual muitos se agarram –, uma fotografia em cima de um piano, as notas sobre como as mulheres são tratadas e até os malditos pinheiros vão se juntando nesse livro cujas páginas marco com um lápis para poder sublinhar e anotar o quanto quiser. O meu exemplar está todo rabiscado.

(p. 82 de 159)
(p. 82 de 159)

Só que no #bookadaybrasil, hashtag que apareceu numa das minhas últimas colunas, havia a categoria “Melhor livro lido em setembro”. Eu precisava de um livro fininho que não tivesse aparecido em outro dia do desafio. Achei que conseguiria ler Nadando de volta para casa, de Deborah Levy (uma recomendação do Bruno), em uma sentada. Doce ilusão: o horário de almoço dos dois últimos dias do mês não me permitiram ler tudo sobre essas férias de uma família (um poeta, uma jornalista internacional especializada em grandes tragédias e a filha pré-adolescente deles) com um casal de amigos, cuja rotina é alterada pela presença de uma jovem nua na piscina. Polifonia das boas, ler o romance é como acompanhar o afinamento, gradual mas arriscado, de um violino: tudo leva a crer que uma das cordas (ou mais) se arrebentará antes do fim.

(p. 130 de 130)
(p. 130 de 130)

Como minha mãe costuma dizer, se é para naufragar, que o navio esteja bem cheio. Chegaram aqui em casa os dois romances da Ali Smith que eu ainda não tinha lido, os dois da era pré-Galindo – antes de passarem para responsabilidade do premiado tradutor de Ulysses, os livros da autora eram traduzidos por Beth Vieira –, e eu precisava começar pelo menos um deles o quanto antes. Não porque teria muita gente com quem comentar (quando terminei Suíte em quatro movimentos, também conhecido como “o melhor livro que li este ano”, eu tive de me contentar com um e-mail sucinto para o Caetano e esperar que as recomendações aos amigos surtissem efeito), mas por necessidade pessoal: Eu. Amo. Essa. Escritora.

Fui de Garota encontra garoto, o mais curto da autora que li, e foi lindo, lindo, lindo. É sobre duas irmãs, desde o momento em que ouvem uma história – “Agora deixa eu contar como eu era quando menina, diz nosso avô.” – até o casamento de uma delas – “É um final feliz. Jesus do céu.” –, passando por alguns pontos de virada, que as movem no cerne da narrativa – “(Ai, meu Deus, minha irmã é UMA GAY.)”. Ainda que o livro seja bem mais simples que Hotel mundo ou Suíte em quatro movimentos, não vejo razão para desmerecê-lo: é da Ali Smith e ler Ali Smith é sempre muito bom.

Esse eu terminei. Agora posso ir retomando os outros, concluindo-os na ordem inversa.

*

Se, no Cloud Atlas original, a primeira narrativa é lida pelo protagonista da segunda, cujas cartas são destinadas a um personagem que aparece na terceira – e assim por diante –, posso constatar que o efeito Cloud Atlas, acima descrito, ocorreu de forma diversa.

Foi como se, numa passagem de Dentes brancos, Irie Jones decidisse ler um livro jogado num canto do salão de cabelereiro em que colocam apliques no seu cabelo; nesse livro, A terra inteira e o céu infinito, ela lê o diário de Nao (uma adolescente como ela mesma) e a leitura de Ruth para este diário. Ruth, por sua vez, meio cansada daquele mistério (e das pesquisas infrutíferas pela internet e dos demais habitantes da ilha em que mora), resolve fazer uma pausa nisso tudo e desfrutar a leitura de um romance de suspense cujos assassinos e vítima são apontados logo no início: A história secreta. Nele, Richard Papen, indeciso se continua ou não sua prestação de contas com o passado, decide ler algo para se distrair; de preferência, algo que não o lembre dos tempos de universidade – nada de gregos, nada de antigo, nada escrito por homens, portanto. Escolhe o Por escrito, um romance contemporâneo de uma escritora brasileira, recém-traduzido por lá, o que se revela uma boa escolha: a preferência da narradora pelos não lugares, pelas ausências, é tão forte que ela enrola a ida para a casa do amante (prestes a ser abandonado) abrindo, na sala de embarque, um livro pelo qual pagou caro – uma extorsão! – numa dessas livrarias de aeroporto. Dos personagens todos, o que mais a intriga é o poeta: ele não sabe se lê ou não o poema intitulado Nadando de volta para casa, escrito pela hóspede desconhecida (uma fã, ele não tinha dúvidas) que sua esposa acolheu na casa de campo alugada por eles. Quando parece que ele finalmente lerá aqueles versos, ele acha um livro fininho, abandonado num canto da sala – provavelmente, dos hóspedes anteriores –, e engata a leitura de Garota encontra garoto, cujas personagens, se não têm plena consciência de serem uma criação ficcional, ao menos sabem que suas histórias merecem ser contadas.

Seu avô gosta de pensar que todas as histórias do mundo são dele, diz ela.

Só as importantes, diz nosso avô. Só aquelas que precisam ser contadas. Tem histórias que precisam ser mais contadas que outras. Certo, Anthea?

Certo, vovô, digo.

Nesse Cloud Atlas improvisado, ao invés de lermos referências a uma narrativa que já conhecíamos (posto que anteriores), vemos personagens cujas vidas são “pausadas” para a leitura, a qual dá vida e protagonismo a outros personagens, que nos eram totalmente desconhecidos. Isso gerou uma espécie de comunhão entre mim e aqueles: dessa forma, não sou o único a deixar a vida em estado de suspensão, a deixar para me preocupar no dia seguinte com essa incerteza, essa ansiedade e esse pânico que me imobilizam de quando em quando – “after all, tomorrow is another day”.

Destarte4, o “feel so close to you right now” não poderia ser mais abrangente.

  1. O contato humano necessário para que o coração fique suficientemente quentinho, sem grandes sobressaltos, mas, também, sem arriscar a sanidade mental
  2. Típico de quando chegamos àquele estágio em que necessitamos concluir uma tarefa o quanto antes, mesmo que o risco de insanidade cresça absurdamente. Desculpe pelo mimimi. Tá foda.
  3. Aliás, palmas para ela. O comentário anterior da narradora-personagem, sobre como os casamentos só favorecem os homens, não me preparou de modo algum para essa cena.
  4. Gente, que chique. Cês viram? Eu usei um “destarte”! Sempre quis tascar um destarte no meio de um texto.