Dentre os mais de 300 filmes exibidos nesse festival, incluindo grandes produções ansiosamente aguardadas, como Garota Exemplar, de David Fincher, e pequenos filmes-cult que fazem barulho, como Dente por Dente, de Kim-ki Duk, o Festival do Rio também reserva considerável espaço para produções que discutem as realidades nacionais, sobretudo documentários.

Nesta crítica dupla, portanto, me atenho a dois filmes que pude assistir na mesma semana, ambos documentários que discutem, à sua maneira e com seus focos específicos, a realidade do Rio de Janeiro.

À Queima Roupa é um documentário-de-terror de Theresa Jessouroun, outrora assistente e produtora do documentarista Eduardo Coutinho. Documentário de terror porque o tema que aborda é simplesmente assustador: a violência da polícia carioca nos últimos 20 anos, desde a chacina de Vigário Geral, em 1993, até os crimes mais recentes, como a execução da juíza Patrícia Acciolli, em 2011, em Niterói, e a morte do dançarino DG do programa Esquenta (Rede Globo), neste ano.

O filme não tem pudores ou censuras para abordar um tema escandaloso. Monta reconstituição dos crimes e também exibe cenas das operações policiais, bem como imagens das fotos periciais das cenas do crime. Assim, se desenha como um documentário de caráter eminentemente sociológico, pensando uma solução que parece complexa, mas certamente envolve o fortalecimento das instituições. O olhar da diretora é de uma cidadã indignada e sua pergunta parece ser: o que faz com que funcionários públicos a serviço da sociedade se voltem contra o Estado e a população, em atos bárbaros, geralmente motivados pelo lucro financeiro?

Um dos entrevistados da obra é um ex-policial e hoje “X9” (delator), que cumpriu pena por quase 12 anos (reduzida pelas inúmeras brechas da lei) pela morte de aproximadamente 300 pessoas. Seu relato é o mais chocante pela frieza com que revela a corrupção intrínseca na instituição, que faz acordos com os amigos do tráfico para forjar apreensões de drogas ou armas, chamando atenção da imprensa e, assim, falseando uma boa imagem da polícia. O delator chega a relevar que em certo ano seu grupo (uma milícia interna conhecida como Cavaleiros Corredores) apreendeu cinco ou seis vezes o mesmo carregamento de maconha, cedido por parceiros traficantes.

O filme também inclui entrevistas com as vítimas das diversas chacinas, testemunhas oculares – e, muitas vezes, com sequelas – da falta de coesão do Estado brasileiro. A quem recorrer quando é a própria polícia quem pratica o crime?

O trunfo de Theresa é problematizar o serviço policial, sobretudo num contexto de implantação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), um bom projeto, mas que na prática tem pendido mais a eleitoreiro do que eficiente, que leva a polícia às comunidades historicamente dominadas por facções criminosos, sem reforçar, contudo, a presença estatal nos morros com outras instituições, por exemplo, que regulem e ofereçam serviços básicos à comunidade, pelo contrário, precarizando o trabalho policial, com longas jornadas de um trabalho perigoso e mal remunerado.

Nesse contexto de quase abandono do servidor público numa zona de guerra, a associação dos policiais com os traficantes, tanto por motivos de sobrevivência, quanto por ganância, é quase que irremediável. Assim, Theresa constrói um documentário premente, urgente e verdadeiramente aterrorizante. O filme tem esse nome porque a maioria das vítimas da polícia chegam no IML (Instituto Médico Legal) desnudas, provavelmente numa tentativa de acobertamento, por parte dos policiais, das execuções à queima roupa, que deixam uma marca de pólvora em torno do buraco da bala. No fim do Festival, o filme levou os troféus Redentor nas categorias Melhor Longa Documentário e Melhor Direção de Documentário1:

Já em Rio 50 graus vemos a cidade pelos olhos de um diretor inglês, Julien Temple, que tenta refletir o presente através de uma análise histórica na formação carioca, desde o fim da escravidão (1888), que por ser mal estruturado fomentou a formação das favelas, até os preparativos da cidade para abrigar a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, intensificando a política de remoções em nome das obras de infraestrutura. À medida que a história avança, a temperatura da cidade aumenta, como uma panela de pressão pronta para explodir – e que já ensaiou essa explosão em junho-13.

O filme também se utiliza de entrevistas com cidadãos comuns deitados no calçadão de Copacabana, até o prefeito Eduardo Paes, direto do Centro de Operações da Prefeitura, apontando os progressos – pontuando, levemente, algumas falhas – de sua gestão. Há também conversas informais com “tipos ideais”, no estilo weberiano, com cariocas, como o motorista de táxi que fala sobre a violência, e uma senhora da zona sul que nega a ditadura militar, elogiando aqueles “áureos tempos” de progresso e paz. Destaque para a conversa alienante com a cantora Bebel Gilberto, filha do “pai” da Bossa Nova, João Gilberto, que diz nunca ter ouvido funk e não ter nenhuma vontade de fazê-lo – velho exemplo da elite negando a cultura verdadeiramente popular.

Assim, o que o filme revela são disparidades sociais, culturais e de classe. Esse filme, em oposição à obra de Theresa, mostra que a incoerência e falta de coesão se revela também (e talvez, sobretudo) na sociedade. Resta saber quem veio primeiro, se o ovo da fragmentação estatal ou a galinha da desunião social.

Ambos os filmes prestam um serviço público de reflexão social. Não são comprometidos com bandeiras ideológicas, mas com ideias. Assumem uma postura crítica e desossam a ilusão sob a qual se assentou a Cidade Maravilhosa. Nesse ponto, deixa no chinelo a propaganda-em-forma-de-longa-metragem Rio, eu te amo , um filme fraco e alienado. Se o trunfo de Theresa está na abordagem nua e crua, o filme de Julien não fica por menos e é uma obra que, mesmo estrangeira, consegue captar algo da “essência” (se é que isso existe) do Rio de Janeiro. Certamente dois filmes feitos para provocar a plateia.

Julien Temple
O diretor inglês Julien Temple analisa o calor social do Rio de Janeiro

Em tempo: Outro filme que assisti nesses dias e que, mesmo não se encaixando perfeitamente com os dois filmes supracitados, serve de complementação à análise do Brasil e, por isso, tem o seu valor, foi O Fim e os Meios, de Murilo Salles, que se aplica bem aos tempos atuais por abordar a campanha eleitoral de um candidato ao Senado (Marco Ricca) e a falta de ética dos políticos. Menos eficiente que os dois documentários destrinchados acima, com um roteiro que às vezes torna-se modorrento pela falta de ritmo, tem seu valor ao retratar os jogos de poder de um país tão avesso a suas figuras políticas. Figura central da obra é a jornalista Cris (Cintia Rosa), que se muda para Brasília com o marido (Pedro Briccio), e aos poucos desenvolve uma relação perigosa com o senador para o qual o marido trabalha como marqueteiro. Assim, o filme é quase uma fábula de como o ator político se imiscui na vida do cidadão comum, quase sempre com resultados trágicos.

  1. Veja a lista completa dos vencedores aqui