A Luneta do Tempo é o empreendimento audiovisual biográfico-ficcional-musical-e-metafísico de estreia na direção e no roteiro do cantor Alceu Valença. Biográfico porque seu quase-protagonista é Lampião, vivido por Irandhir Santos; ficcional porque aproveita as brechas para inserir assuntos caros ao autor, como a vida circense; musical porque suas músicas, muitas delas do próprio diretor, são mais do que adornos, mas ferramentas narrativas que costuram toda a história; metafísica porque trabalha com um conceito transcendental e é, sobretudo, uma ode ao espírito vivo do cangaceiro pernambucano.

Há também filosofia nessa fábula, misturando a lei do eterno retorno nietzschiano com o preceito de Karl Marx de que a história repete-se duas vezes, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa: no sertão pernambucano, Lampião, Maria Bonita (Hermila Guedes) e seu bando fogem da caçada da polícia local, liderada por Antero Tenente (Helder Vasconcelos). O embate final entre eles é trágico (e lindamente filmado), deixando resquícios para os tempos futuros e as gerações vindouras em situações muito semelhantes.

O projeto demorou cerca de quatorze anos para se concretizar, em parte para o amadurecimento audiovisual do realizador, outra pelas dificuldades inerentes às produções brasileiras1. Inicialmente uma história de cordel, até que por indicação de Walter Carvalho (Raul – o início, o fim e o meio, 2012) começou a ser pensado como filme. Passou então por algumas aulas básicas de Cinema (“Plongée e contra-plongée” – como disse Alceu, desdenhosamente, na première do filme no Festival do Rio), com uma professora particular. Mas ele queria fazer algo diferente, algo do jeito dele e do jeito do sertão: abandonou as aulas e começou a produzir seu filme.

O resultado foi uma obra muito particular, talvez irregular em roteiro e edição, talvez sem ritmo no segundo ato, mas certamente um filme cheio de poesia, lindamente fotografado, com ótimo figurino, que comove, anima e bem retrata tipos clássicos da vida nordestina. Nada mais justo que escusar Alceu por seus erros, se até nossos diretores mais tarimbados pecam por roteiros desiguais e buracos na trama. O cantor consegue, com suas limitações, atingir o objetivo de estruturar uma história própria, prestando homenagens aos temas que lhe são mais caros e achando espaço até para se aventurar na atuação, no papel do palhaço Véio Quiabo.

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Alceu Valença dirigindo, roteirizando, compondo e também atuando.

As cenas mais lindas são as de Lampião e Maria Bonita num universo transcendental, com o cangaceiro enfrentando dificuldades para assumir sua nova condição e sua mulher sofrendo com isso. Ambas as atuações estão precisas, pontuais, sem exageros: Irandhir Santos sabe a hora certa de falar, de calar, de sorrir e de brigar. Hermila é grave, como mulher séria e sofrida, mas seus olhos estão sempre apaixonados.

O que Alceu Valença fez aqui, portanto, foi uma verdadeira realização cultural, imprimindo uma nova estética ao cangaço, explorando o marrom opaco da terra e árvores secas, em oposição ao céu azul claro, sempre sem nuvens, de um nordeste seco. Construiu um roteiro ousado, que apesar das escorregadas, consegue nos trazer uma abordagem inovadora, sem perder-se na dezena de personagens ou nos três espaços temporais da trama. Acima de tudo, nesse filme Alceu nos reapresenta ao nordeste; nós, aqui das terras mais ao sul que às vezes tendemos a achar que o Brasil só acontece aqui.

  1. De Francisco Russo, no Adoro Cinema.