Me lembro que a primeira vez que vi o nome de Joseph Roth foi num livro de Eric Hobsbawm, provavelmente A era dos extremos. Tratava-se de um comentário elogioso, ressaltando o potencial expressivo de sua obra ao narrar a desagregação do finado Império Austro-Húngaro. Segundo o historiador, Roth foi o grande cronista dessa época e desse processo, e sua literatura acabou por se tornar um documento histórico de grande valia para aqueles que quiserem se debruçar sobre o período.

Se a era dos extremos iniciou-se com a Primeira Guerra Mundial, e se esse fatídico evento teve um papel primordial na desagregação do Império Austro-Húngaro, então Roth foi não só o cronista da decadência desse império, mas uma testemunha privilegiada da consolidação do “breve século XX”. Tanto quanto narrar um processo específico da história europeia, ele estava vivendo (e escrevendo sobre) uma mudança bastante acentuada no panorama histórico mundial: o início daquele século que trouxe em seu seio tantas e tão discrepantes transformações, e em cuja genealogia encontramos marcas indeléveis das feições históricas de nossos próprios tempos.

É por conta disso que Berlim ganha envergadura e se põe a ombrear os demais escritos de Roth, muito mais por sua perspicácia e aguda observação do que por sua sofisticação narrativa. O livro é uma reunião de crônicas de Roth publicadas na imprensa alemã ao longo da década de 20, e trazem como elemento aglutinador justamente a capital alemã, num dos períodos mais cruciais da história do país, o período entre-guerras, i.e., o momento histórico que albergou o nascimento do nazismo e a ascensão ao poder de Adolf Hitler.

Usando de um método jornalístico nada convencional, Roth escreve que ao invés de cobrir os “grandes eventos” da política ou as solenidades públicas às quais comparece toda a massa de repórteres, ele se interessa pelas pessoas simples e as situações cotidianas que grassam a vida prática, aquela matéria de eventos que constitui o próprio dia a dia das pessoas e que não raro toma como palco a rua, as lojas, as estações de trem, o mercado popular, a casa de banho etc. Por isso é que, como uma espécie de nota explicativa, Roth escreve no início da coletânea, acerca de seu método jornalístico:

O diminutivo das partes me impressiona mais que a monumentalidade do todo. Já não tenho gosto pelos gestos amplos dos heróis do palco universal. Quanto a mim, eu passeio. (p. 14)

Já que ele não quer se preocupar centralmente com as figuras mais proeminentes da sociedade e da política berlinense, mas sim com os sujeitos anônimos que ocupam palcos bem menos iluminados, o escritor-jornalista se põe a passear pelas ruas de Berlim, pois é ali que ele encontrará os tipos humanos que irão figurar nas suas crônicas. É nesse sentido, acredito eu, que os escritos de Roth permitem que ele se exprima de maneira mais idiossincrática e expressiva, sem contar que ao ajustar o foco para enxergar essa vida que decorre na sombra dos “grandes eventos”, o autor acaba reconstruindo uma dimensão de Berlim que é fundamental para compreender a “estrutura de sentimentos” (para usar um termo de Raymond Williams) que constituiu forte base de apoio ao líder do partido nazista.

Digo que as crônicas reunidas em Berlim permitem a expressão idiossincrática de Roth por dois motivos principais. O primeiro deles é o fato de que tanto quanto jornalista, Roth tem um pendor literário que pode ser melhor trabalhado tomando certas liberdades na escrita, liberdades cujo tema e cuja abordagem das crônicas permitem tomar com muito maior fôlego. Ao quebrar certos protocolos jornalísticos quanto à “isenção” subjetiva do autor, Roth pode utilizar o formato das crônicas como plataforma para observações precisas (e “objetivas”, por assim dizer) combinadas com preocupações que são só suas, dando um tom pessoal que redimensiona as pessoas, as situações, os objetos e os lugares postos sob a luz. O segundo motivo se refere à própria escolha e abordagem dos temas. Embora soubesse ser sério quando necessário, Roth era um bon vivant, um boêmio (vide A lenda do santo beberrão), e seu potencial analítico não ganhava corpo senão através de uma sensibilidade que é tipicamente literária. Berlim só pode ganhar o grau de apuro que possui enquanto análise porque Roth pode andar (passear) livremente pelas ruas da cidade, inteirar-se dos processos que constituem o cotidiano dela e, por que não dizer, tomar parte neles como forma de aguçar sua própria sensibilidade.

Embora curiosas, as crônicas podem soar, às vezes, despretensiosas demais, como se Roth não quisesse mais do que fazer um apanhado aleatório de fragmentos do dia a dia, como se estivesse a fazer um inventário de cotidianidades. Ainda que haja um componente aleatório considerável na escolha das situações, Roth não perde de vista dimensões sociais e políticas mais amplas, com as quais os pequenos eventos dialogam para se constituir. O interessante resultado dessa combinação é que Roth aproxima-se de abordagens mais clássicas da Alemanha como as de Siegfried Kracauer, de Walter Benjamin ou mesmo as do controverso Georg Simmel sem perder de vista a imediaticidade e a concretude da vida prática berlinense.

Essa perspicácia se dá, entre outras razões, pelo que parece ser outro dos eixos aglutinadores da obra: ainda que o principal deles seja Berlim, creio que um dos fortes catalisadores dos textos seja a modernidade. Essa questão definitivamente aproxima Roth de Kracauer, Benjamin e Simmel, e serve também como um fio subjacente que urde as diversas tramas e os diversos cotejos que o escritor constrói ao longo das crônicas. Ao falar da arquitetura berlinense, da velocidade do trânsito, dos costumes dos nouveaux-riches, da propaganda, da forma de viver, das mudanças no espaço urbano, Roth está falando de uma Berlim moderna que nasce, em grande parte, dos escombros da velha Europa. Como alguém que nasceu com um pé em cada tempo, o escritor-jornalista desenvolveu uma argúcia própria para perceber os contrastes entre o velho e o novo, entre os tempos idos e os nascentes.

Como ele próprio ressalta logo no início do livro, Roth é um ranzinza. Ele não vê com bons olhos as transformações em curso no período em que viveu, e quem sabe especialmente por isso, tenha tido uma capacidade toda especial de desnudar seus absurdos. Mais do que um velhinho ranzinza, ele é um velhinho ranzinza com talento, o que faz dele um privilegiado observador das bizarrices da vida moderna, como quando fala do que ele chama de “a filosofia do museu de cera”: segundo Roth, essa instituição não possui mais o apelo de outrora, porque a tônica dos novos tempos não é estática, e sim extremamente dinâmica, de modo que as imagens congeladas do museu de cera não mais correspondam aos anseios das novas gerações.

Através de uma prosa sucinta (adequada ao formato da crônica), ora sentimental, ora ferina, mas sempre animada pela crítica, Roth constrói um mosaico possível da Berlim do pós-Primeira Guerra Mundial. Seu olhar não pôde deixar de sublinhar aquele mal-estar que tantos outros críticos da modernidade sublinharam, o qual, combinado às crônicas que tocam na política (sintomaticamente as que se aproximam do final dos anos 20), nos oferecem um quadro bastante interessante sobre a “atmosfera” social, política e cultural que respirava aquela cidade que testemunhou a ascensão de uma das mais terríveis forças que moldaram o século XX.