Aviso: o texto a seguir é sobre um game. Peço que, se factível, possíveis preconceitos sejam deixados provisoriamente de lado, pois não se trata de um jogo “tradicional”. Não há qualquer tentativa de testar seus reflexos ao pular em cima de inimigos coloridos com um encanador italiano, ou de matar dragões com espadas e bolas de fogo enquanto se acumula pontos de experiência para aumentar a eficiência de suas espadas e bolas de fogo, tampouco de simular a experiência de metralhar inimigos em alguma guerra aleatória. Não há sequer gráficos: estamos falando aqui de uma obra que pode ser considerada, em partes iguais, jogo eletrônico e conto de ficção especulativa.

Jogos de texto existem desde o surgimento dos microcomputadores. Concebidos em parte devido a limitações tecnológicas, esses jogos não têm qualquer representação visual de seus elementos; como o próprio nome sugere, tudo é descrito através de palavras. Assim sendo, as coisas acontecem na imaginação do jogador, criando a sensação de que você está participando de um conto gerado em tempo real, controlando as decisões do protagonista. O gameplay se dá inteiramente pela digitação de comandos. Para se mover pelo “cenário”, é necessário usar as direções cardinais. “Go north,” “go west” etc.

A tela inicial de Zork (abaixo em tradução livre) é um bom exemplo disso:

“Você está em um campo aberto ao oeste de uma casa branca (…). Há uma pequena caixa de correio aqui.

>abrir caixa de correio

Abrir a caixa de correio revela um panfleto.”

E assim por diante. O termo “ficção interativa” é geralmente utilizado para descrever esses processos eletrônicos, mas o conceito de narrativa em árvore, em que o leitor toma decisões com a possibilidade de levar a história para caminhos diferentes, teve sua origem na literatura. Embora aplicada de forma primitiva por alguns autores lá em meados de 1940, a técnica se solidificou nos “livros-jogo” que começaram a ficar populares nos anos de 1970. Você lê uma cena e no final decide o que quer fazer entre algumas opções, pulando para a página indicada dependendo da que escolheu.

As duas formas evoluíram juntas, mas pode-se argumentar que a versão eletrônica é mais adequada ao conceito, já que é impossível “trapacear” – em um livro, é muito fácil marcar a página em que se está e checar o resultado de uma decisão, verificando se ele levará à morte do personagem (todo mundo que já leu esses livros sabe exatamente do que eu estou falando). Isso elimina o suspense e a sensação de consequência, assumindo uma honestidade por parte do leitor que simplesmente não é necessária em um jogo de computador, em que os resultados de suas ações estão ocultos até que você aperte enter.

Livros são livros, e ninguém espera que eles façam coisas que nunca fizeram. Computadores, por outro lado, abrem inúmeras possibilidades a cada avanço tecnológico. Justamente por isso, a versão eletrônica das narrativas interativas veio com prazo de validade. Quanto mais a tecnologia alcançou a imaginação dos desenvolvedores de jogos, abrindo possibilidades para representações visuais, mais os jogos de texto foram sendo abandonados, tornando-se mera curiosidade, uma relíquia de uma era em que até coisas de plástico pareciam de madeira e o seu telefone era uma coisa que ficava na sua casa, em cima de uma mesa ou pregado na parede.

E em algum universo paralelo esse foi o fim da história, mas é engraçado como certas coisas são cíclicas. Os avanços tecnológicos finalmente chegaram em um ponto tão elevado que não é mais necessário ser um gênio da programação para criar um videogame. Some a isso o infindável potencial para nostalgia da internet, e chegamos a uma era em que jogos de texto são novamente uma forma válida de entretenimento, com inúmeros exemplos que você pode jogar no seu browser e diversos prêmios exclusivos para o gênero.

O que nos traz, finalmente, a Coloratura, o jogo que me incentivou a escrever esse post. É de bom-tom avisar aqui que, se você entende inglês e pretende jogar, é melhor parar de ler agora. Boa parte da graça do jogo é a descoberta do que diabos está acontecendo, pois trata-se de uma narrativa em que você vai gradualmente entendendo coisas que a priori soam incompreensíveis. Assim sendo, é impossível entrar em detalhes sem revelar pelo menos alguns spoilers e arruinar parte da experiência. Enfim, o link está ali no começo do parágrafo. Vai lá jogar e depois volta aqui. Eu espero.

Pronto?

Você não jogou, né?

Criado por Lynnea Glasser (que agora trabalha para a BioWare), Coloratura é uma ficção interativa sci-fi bizarra e fascinante. O jogo te coloca sob ponto de vista de uma criatura alienígena que experiencia a realidade de forma radicalmente diferente de como os humanos a experienciam. Trata-se de um ser “semi-aquoso” que vive em uma câmara cristalina em algum lugar. Sua “casa” é retirada de seu habitat natural por cientistas, e sua missão é arrumar um jeito de se comunicar com os humanos para conseguir voltar para lá.

A questão é que você não tem a mínima ideia de como fazer isso. Como falar sem boca? Como escrever uma mensagem sem mãos? Suas limitações não são apenas físicas: mesmo que pudesse falar, você não entende a língua dos humanos. Mais grave do que isso, você não parece compreender os pormenores da diferença entre “vivo” e “morto.” Certas decisões tem consequências não intencionais com as quais os humanos não parecem exatamente contentes. Aos poucos, você vai percebendo que tem uma história de terror acontecendo nas margens da sua percepção, e você é o monstro.

Lendo sobre o jogo, encontrei comparações a “The Outsider”, do Lovecraft, outra história sobrenatural contada do ponto de vista de uma criatura inumana. O conto de Lovecraft, no entanto, é basicamente uma cena longa com um twist previsível no final (não é das melhores histórias do autor, embora pelo menos não seja racista como algumas), e sua narrativa opera através de conceitos familiares ao leitor. Todo o ponto da história, inclusive, é criar uma ilusão de “humanidade” para o narrador, já que, de outra forma, a reviravolta não funcionaria.

Pode-se dizer que Coloratura pega o caminho oposto: o jogo te arremessa de cabeça em um prólogo quase incompreensível, uma descrição de uma existência puramente metafísica, baseada em uma harmonia com a “canção do universo”, e vai aos poucos introduzindo elementos do mundo material, conforme o(a?) protagonista interage com o ambiente onde se encontra. A progressão é cuidadosa, simulando efetivamente a experiência de repentinamente encontrar-se em um mundo alienígena radicalmente diferente do que se está acostumado. O mais interessante é que se trata do nosso mundo.

Para ilustrar a percepção da realidade da criatura, a autora se utiliza ostensivamente de recursos sinestésicos: você não é capaz de entender a língua dos humanos, mas pode sentir as emoções deles, que são traduzidas em cores. Isso acaba se tornando bastante importante para o gameplay, já que eventualmente você deverá influenciar as emoções de algumas pessoas para conseguir seus objetivos. Uma combinação aparentemente nonsense de palavras, como “color medic indigo,” por exemplo, é um comando que faz total sentido dentro desse contexto.

O cuidado em descrever o cenário de forma a tornar as coisas suficientemente compreensíveis para que o jogador consiga deduzir o que deve fazer, ao mesmo tempo em que mantém o ponto de vista alienígena, é talvez o maior trunfo da narrativa. Ao chegar em uma sala, objetos são descritos de forma vaga, simulando a falta de referências da criatura em relação ao mundo material dos humanos. As imagens que essas descrições conjuram na sua cabeça são bizarras, mas, conforme se avança no jogo, aos poucos fica claro que tudo é muito mais banal e pragmático do que aparenta ser.

Trata-se de uma narrativa que explora o potencial dos jogos de texto de uma forma raramente alcançada, sendo que é difícil imaginar outro jeito de contar essa história com o mesmo efeito. Com representações visuais, a perspectiva obviamente se perderia; você poderia entender que está controlando uma criatura bizarra, mas não se sentiria na “pele” dela, já que os cenários com os quais interage seriam instantaneamente identificáveis. Na forma de conto, a história seria ainda bem interessante, mas o fato de você influir nas decisões gera uma sensação de imersão que seria difícil de conseguir apenas com prosa.

Apesar de todo o engenho envolvido, há limitações. A narrativa é bastante linear, e a mensagem de que determinada pessoa “não pode ser colorida no momento”, por um motivo ou por outro, acontece com uma frequência que às vezes soa como um jeito fácil demais de forçar o jogador por um caminho predeterminado. Pelo fato de ser um jogo desenvolvido por uma única pessoa em um período relativamente curto, entretanto, é um problema compreensível, apesar de um pouco frustrante. Muito se fala sobre o status de games como arte. Coloratura é um bom argumento: trata-se de uma experiência que, além de criativa e envolvente, é provavelmente impossível de reproduzir em outra mídia.