Para uma pessoa completamente desorganizada, eu, às vezes, aprecio uma certa ordem no mundo, alguma confluência de fatores, uma sensação leve de que, talvez, quem sabe, exista algum tipo de orquestração do universo. Por exemplo, eu gosto de festas temáticas. Ou de quando você aprende uma palavra nova, ou descobre uma banda, e de repente ela está em todos os lugares. Tem um nome específico, esse efeito, eu só não me lembro qual é.

Neste verão, estamos todos vivendo sob a estrutura pós-moderna e caótica apenas na medida certa de David Foster Wallace, é claro. E como se querendo comemorar meu recente relacionamento longo e estável (possivelmente o único do ano) com um tijolão branco e laranja, alguns meses atrás minha mãe me convidou para passar a semana do Natal em um cruzeiro no Caribe e eu, sem pensar muito, disse sim.

Eu sei, eu sei. Eu consigo imaginar vocês todos com uma cara de cinismo. Eu efetivamente posso ver nosso atual autor preferido, de bandana azul, balançando a cabeça e me perguntando “o que foi que eu te disse sobre esse tipo de coisas?” (talvez eu tenha até argumentado de volta com ele, mas nego qualquer necessidade de remédios para meu cérebro). Mas uma viagem é uma viagem. E como foi muito bem documentado por aqui, esse ano foi, digamos, intenso. Eu realmente precisava de férias. Possivelmente de férias da minha maneira habitual de tirar férias.

Então eu joguei um monte de biquínis na mala, um livro do Pynchon, Comer, Rezar, Amar (eu gosto de viver os clichês completamente) e protetor solar o suficiente para cuidar de uma creche de crianças suecas por um ano. Comprei uma Vogue no aeroporto e decidi tentar me manter longe de perrengues, problemas e passaportes perdidos pela próxima semana.

O que, para surpresa geral dos consulados e serviços de atendimento ao turismo, eu fui capaz de fazer.

Mas não largue essa coluna agora! Calma, pega na minha mão, eu prometo que ainda sou pelo menos um pouco interessante.

A questão sobre um cruzeiro no Caribe é que, flutuando em um navio monstruoso em mar aberto por horas sem fim, você deveria se sentir no mínimo isolado, distante da terra, dos homens disfuncionais e do possível excesso de bebida que você deixou para trás no solo (claro que essa é uma outra pessoa, jamais essa que vos fala). Mas você se sente mais perto de tudo do que jamais esteve na vida. Toda a experiência é feita para que você não se sinta desconfortável, deslocado, perdido ou todos aqueles outros sentimentos comuns a uma pessoa que viaja.

A maior parte do staff, mesmo o jovem filipino do bar que olhou suspeito para a velocidade com que eu sumia com um mojito, fala um milhão de línguas. Inclusive português. O jantar acontece em uma mesa comunitária onde, teoricamente, você deveria confraternizar com as diversas nacionalidades ali presentes, mas a organização agrupa brasileiros com brasileiros e meu maior esforço linguístico das próximas sete noites acaba sendo apenas tentar não me contaminar com o sotaque gaúcho da pessoa na minha frente.

Mais do que tudo isso, no meu primeiro dia tomando sol no deck do navio eu ouço a sempre inconfundível e onipresente “Ai Se Eu Te Pego”. Alguém deveria conduzir um estudo sobre Michel Teló e a verdadeira falta de limites ou escrúpulos da globalização. Fiz 25 anos em um vilarejo da Capadócia que contava com apenas um bar, onde eu, como é meu hábito há tanto tempo, fiz amizade com o garçom. Após algumas doses de raki e cigarros roubados, ele saca o celular e me mostra um vídeo: sim, claro, óbvio, pessoas fazendo coreografia para Ai Se Eu Te Pego.

Em janeiro desse ano eu estava em um restaurante em uma cidade qualquer do interior de Cuba onde a TV mostrava belos exemplos da maravilhosa produção de videoclipes da América Latina (uma dica para vocês: joguem Prêmios Lucas na busca do YouTube), quando ninguém mais, ninguém menos do que Michel Teló surge na tela. Em uma parceria com o cantor mais popular da Colômbia. Eu acho que o FBI está perdendo tempo juntando informações sobre pessoas com hábitos de cruzar fronteiras zoadas pelo mundo (de novo, não que eu faça isso), quando deveria mesmo era estar interrogando esse menino sobre seus planos de dominação mundial.

Tudo isso para dizer que ouvir Ai Se Eu Te Pego não chega a me surpreender, só me lembra que eu continuo nesse mesmo planeta, infelizmente. O problema começa quando ele é seguido por Lepo Lepo e eu me sinto quase como Édipo tendo que me conformar que fugir só me levou de volta ao meu próprio destino.

Então eu não estou longe de nada, eu aceito. Pego meu chapéu e desço para a primeira ilha, Tortolla, onde fica a capital das Ilhas Virgens Britânicas, e é aí que o balão de isolamento que a companhia de cruzeiros tão cuidadosamente constrói em torno de seus passageiros começa a falhar. Não é que ele estoure e eu esteja de repente tendo uma autêntica experiência caribenha, nada disso, mas é como se o plástico esticasse demais e eu conseguisse ver o que está fora do meu espaço, embora eu não consiga chegar lá.

Os motoristas de táxi conversam comigo em um inglês ou francês perfeito, mas viram para o lado e desandam a tagarelar em um dialeto incompreensível. Nos carros, a versão mais crua da salsa que eu ouvia em algumas ruas de Cuba e o reggaeton, essa inescapável paixão do resto da América Latina. Em St John’s, capital de Antigua e Barbuda, eu passeio por algumas ruas fora da pequena disneilândia de compras preparadas para os turistas e vejo a bagunça e os prédios semidesabados que já passei a esperar dessa parte do mundo. Fico fascinada com um grupo de mulheres que conversa do lado de fora de um mercado com seus cabelos todos enrolados em bobs e outros artefatos multicoloridos.

No entanto, a minha sensação é que esse lado de fora é inalcançável mesmo que eu estivesse em uma outra viagem. Sozinha, com minha mochila. É como se os caribenhos quisessem manter os turistas no lugar que lhes condiz. Eu intuo que existem praias muito mais bonitas do que aquelas que visito, mas que ninguém me contaria delas, que eles jamais conversariam na minha frente sem ser nesses dialetos impossíveis. Eu respeito e, de certa forma, gosto disso. Que algo ali se mantenha longe das minhas mãos curiosas e bagunceiras, que eu não possa escrever sobre o labirinto de ruas da capital de Santa Lucia. Que algo aquelas pessoas se recusem a compartilhar, que em algum grau elas se preservem. Há uma reserva e uma distância muito clara por trás de todos os sorrisos amigáveis que me estendem ali.

Menciono isso por acaso, essa sensação de distância, ao meu garçom indonésio do jantar. Ele sacode a cabeça afirmativamente e me diz que é o mesmo na Indonésia. Ele é de Bali, todo mundo quer ir a Bali, há milhões de hotéis em Bali, mas ele mesmo prefere Longbok e Komodo. Meus olhos se acendem e eu conto que pretendo estar na Ásia em exatamente um ano, ele abre um sorriso enorme e diz “um minuto”. Volta com seu nome em um pedaço de papel para que eu o adicione no facebook, me diz que tem férias em dezembro e que posso ficar na sua casa e não me preocupar em pagar hospedagem. “Todo mundo é amigo em Bali”, ele me conta, “eu te apresento meus amigos e você nunca vai querer sair de lá”. Acredito nele e agradeço, silenciosamente, esse pequeno passo nos meus planos mirabolantes de sudeste asiático.

Eu guardo esse papel como minha pequena parcela de aventura dessa viagem. Me sinto orgulhosa dele, ostento quase como um troféu: eu tenho o contato de alguém em Bali! O garçom hondurenho ri de mim, pergunta sobre meus outros planos, menciono a Colômbia, pergunto de Honduras, ele me conta sobre sua cidade e sobre o esquema de trabalho. Me diz que aprendeu a falar inglês no navio, elogia meu espanhol. No final, aperta minha mão afetuosamente, me chama de “jovem” e se despede com alguma sinceridade.

No aeroporto, troco minha Vogue brasileira por uma revista espanhola e tenho a sensação de que a questão toda de um cruzeiro no Caribe é que você está longe demais de onde deveria estar, mas perto de todo o resto do mundo.