(Alerta aos leitores desavisados: este texto discute o final de O homem do castelo alto.)

Perguntei ao oráculo: o que devo dizer no Posfácio sobre os últimos capítulos do livro?

Ele respondeu com o primeiro hexagrama, O Criativo, com nove na primeira e na quinta posição. Um resultado auspicioso.

Dragão voando nos céus.
É favorável ver o grande homem.

Não me surpreende que o I Ching tenha se referido a Philip K. Dick como “o grande homem”. Em O homem do castelo alto, o oráculo chinês aparece em relevo desde o princípio – metade dos personagens principais mostra quase uma dependência psicológica do livro das mutações. Frank Frink, Juliana, Mr. Tagomi e, como descobrimos, o próprio Abendsen, consultam com frequência as suas sugestões. Mas o final de PKD revela uma influência ainda mais profunda do oráculo, como o verdadeiro fundamento de todo o livro. Ou melhor, de ambos os livros: de O homem do castelo alto e de O gafanhoto torna-se pesado, a história dentro da história.

– É Chung Fu – disse Juliana. – Verdade interior. Eu também sei usar a tabela. E sei o que significa. […]
– Isso quer dizer que meu livro é verdade, não é?
– Sim – ela disse.
Com raiva, ele disse: – Alemanha e Japão perderam a guerra.

 

Ok, sabemos que na “verdade interior” Japão e Alemanha perderam, mas o que isso significa no contexto do livro? Vou tentar algumas respostas, e depois vocês me dizem o que pensam (ou então consultamos o oráculo).

A. Universos paralelos

À medida que são apresentados trechos de O gafanhoto torna-se pesado fica claro que ele não reflete a “nossa linha de tempo”, mas uma terceira, em que Estados Unidos e Inglaterra dividiram o mundo pós-guerra. Poderiam existir ainda outras linhas?

Um sinal presente no texto, que pode facilmente passar desapercebido, acontece no capítulo 14. Quando Mr. Tagomi vaga pela cidade, transtornado, há um momento em que ele reconhece pela primeira vez o Embarcadero Freeway. “Eu nunca o vi antes”, diz o personagem. Como outros leitores apontaram antes, essa visão pode ser entendida como um pequeno vislumbre da cidade de São Francisco da nossa linha de tempo.

A ideia de que o final do livro propõe um cenário de universos paralelos preservaria a integridade ficcional da trama: a epifania de Juliana poderia, então, ser entendida como a descoberta de que sua “realidade” seria apenas mais uma entre outras possíveis.

O problema com essa resposta é, claro, o próprio I Ching. Qual seria nesse caso o sentido do hexagrama de “verdade interior”?

B. Metaficção ou “Juliana, você não existe”

Nessa maneira de compreender o final, a sabedoria metafísica do I Ching revela aos personagens que sua linha de tempo “não existe”. Juliana, ao deixar a casa dos Abendsen, vai embora “passando por focos de luz da sala e depois pelas sombras além do gramado da casa, até chegar à calçada mergulhada na escuridão”. Desaparece gradualmente, no mesmo passo em que termina o livro.

Será que PKD, nessas derradeiras páginas, quis quebrar a barreira da ficção? Talvez essa solução ofenda aos leitores de hoje, tão acostumados aos truques metanarrativos da mesma espécie. Mas lembremos que O homem do castelo alto foi escrito em 1962, e que, então, um final assim tenderia mais para o “arriscado” que para o “batido”.

De qualquer forma, essa interpretação incorre na dificuldade oposta à dos universos alternativos: se o I Ching revela a verdade última, por que O gafanhoto torna-se pesado não mostra a nossa linha de tempo? Seria mais uma provocação metaficcional de PKD?

C. Realidades metafísicas

Se pudéssemos definir a literatura de Philip K. Dick em apenas uma questão, certamente seria: como podemos saber o que é a realidade? Essa é a pergunta que se revela ao final de vários de seus romances, em diferentes formatos. Como se perguntava o sábio chinês: Zhuangzi sonha ser a borboleta ou a borboleta sonha ser Zhuangzi?

Suponha que você empreendesse o mesmo projeto literário de Abendsen na história. Que escrevesse um livro inteiro consultando as sugestões do I Ching. E que o resultado fosse o mesmo, ou seja, uma versão alternativa da nossa realidade. Não seria um pouco assustador?

Nesse caso, o mais importante não seria descobrir a realidade última em todos os seus detalhes, mas mostrar que somos ignorantes quanto ao que há além da superfície das nossas ações. Essa solução parece de acordo com a filosofia de Baynes no capítulo 3, quando ele reflete, a respeito dos nazistas:

Querem ser os agentes da história, não as vítimas. Identificam-se com o poder de Deus e acreditam ser divinos. É essa sua loucura básica. […] O que não compreendem é a impotência do homem. Eu sou fraco, pequeno, sem a menor importância diante do universo. Não sou notado dentro dele; vivo sem ser visto. Mas por que isso é ruim? Não é melhor assim? Os deuses destroem quem atrai a atenção deles. Seja pequeno… e escape à inveja dos grandes.

 

Perguntei ao oráculo: como podemos entender o final de O homem do castelo alto?

Ele respondeu com o hexagrama trinta e quatro, O Poder do Grande. Com nove na primeira e na segunda posição e seis na quinta.

O trovão acima, no céu: a imagem do PODER DO GRANDE.
Assim o homem superior não trilha caminhos
que não estão de acordo com a ordem vigente.

 O que isso significa? PKD é o homem superior? Ele está de acordo com a ordem vigente? Quem de fato entender o I Ching, me ilumine.