Dando continuidade ao mês dos clássicos aqui no Posfácio, que já contou com o pioneiro Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, o romance sobre o puritanismo A letra escarlate, de Nathaniel Hawthorne, o poderoso O vermelho e o negro, de Stendhal, e o avant-garde Jacques, o fatalista, e seu amo, de Diderot, veremos agora o clássico americano O sol é para todos, de Harper Lee, em texto da colaboradora convidada Julia Alves.

Escrever apenas um best-seller na vida não é algo tão incomum quanto se imagina1, e Harper Lee integrava esse grupo até pouco tempo, quando anunciou o lançamento de Go Set a Wachtman, continuação de O sol é para todos. O manuscrito foi guardado por cerca de cinquenta anos e narra a volta da personagem principal, Scout Finch, já adulta, à sua cidade natal. O retorno ao passado obriga Scout a lidar com as mudanças inerentes da época sobre o local onde cresceu, e desconstruir a idealização infantil sobre seu pai e herói, Atticus Finch. O novo livro, com pouco mais de duas semanas nas prateleiras, bateu um milhão de cópias vendidas apenas nos EUA, e, no Brasil, já tem lançamento prometido pelo selo Jose Olympio.

Já a primeira obra de Lee, O sol é para todos, foi lançada em julho de 1960, no começo de uma época histórica de conquistas de direitos pela população negra norte-americana. Em reportagem online sobre a repercussão do livro na época, a PBS Newshours nos relembra de fatos importantes que antecederam seu lançamento: quatro garotas negras foram mortas em um atentado a uma igreja em Birmingham, no Alabama; no mesmo estado, forte repressão policial contra a marcha de Selma; o protesto pacífico conhecido como Greensboro sit-ins, em que jovens negros ocuparam uma seção de restaurante destinada apenas a pessoas brancas como forma de resistência, sofrendo, por isso, violência policial e ataques de outros civis racistas.

Imersa em seu próprio tempo, Harper Lee não deixou de refleti-lo: em seu livro, a questão racial está presente desde as primeiras páginas, ainda que inicialmente indefinida e tímida, e com o próprio amadurecimento das personagens vai crescendo e se torna o pilar da história.

Maycomb, uma cidade velha e cansada, localizada no Alabama, é o cenário escolhido pela autora. Criada para abarcar os personagens e suas vidas ordinárias, a pequena cidade parece ser construída como símbolo das experiências sulistas norte-americanas e seus habitantes de classe média. Algumas famílias se enraizaram no local desde tempos imemoriáveis, construindo estereótipos umas das outras e um código moral forte, que se mantinha à base de constante vigilância mútua.

Scout Finch, narradora da trama, conta a história em flashback, partindo de um acontecimento da sua infância e do irmão: a chegada de outra criança, Dill, que iria acompanhá-los durante os verões. A partir daí, Lee desenvolve a trama a fim de explicar seu evento principal: o julgamento (injusto) de Tom Robinson.

A qualidade da escrita de Harper Lee aparece primeiramente na sua capacidade de criar uma perspectiva infantil sem cair em dois erros que poderiam ser terríveis: de um lado, o da infantilização extrema; de outro, o uso de vocabulário inapropriado, demasiado adulto.
Os diálogos são simples, as brincadeiras são narradas com dinamismo e, assim como os personagens infantis, o cenário também é diminuto. A dimensão espacial da história cresce junto com Scout e Jem, quando eles fazem a transição para a adolescência. Inicialmente, a vida acontece em torno da casa dos Finch, e a atenção é voltada especialmente para o misterioso Boo Radley, vizinho que se mantém isolado em sua propriedade. A complexidade das personalidades infantis é incrível e resulta em uma das melhores cenas do livro: o primeiro dia de Scout na escola, em que a percepção passada ao leitor é a de estar perante uma versão da alfabetização de Maycomb.

A abordagem do racismo é sutil na primeira parte do livro. Rodeados por pessoas brancas, Scout e Jem tinham contato apenas com a empregada da casa, Calpurnia. O laço entre os Finch e a família de Calpurnia remete à escravidão, já que eles eram estritamente latifundiários até Atticus Finch e o irmão se decidirem por profissões liberais. A definição de empregada doméstica não abarca todas as funções afetivas e laborais da personagem: assumiu o papel de educação das duas crianças, formando seus caráteres e os disciplinando de acordo com a moral local. Ensinou Scout a ler e escrever com o auxílio da Bíblia, assim como fez com seu filho nos tempos em que nem todos os brancos eram alfabetizados (quanto menos os negros). No entanto, seu espaço na casa era claro: dentro da cozinha ou na área dos fundos.

Os filhos de Atticus Finch começam a sentir o peso da segregação racial quando o pai passa a defender judicialmente Tom Robinson. À medida que saem da zona de conforto da vizinhança e passam a frequentar o centro comercial e a escola, sofrem agressões por serem “amigos de negros”. A palavra racismo não é citada pela autora, mas tampouco se faz necessária quando as diferenças entre os dois grupos extrapolam em desigualdade econômica e de direitos.

Meu principal incômodo com a autora é a exaltação ao caráter de Atticus Finch. É um personagem íntegro, justo e que faz uso da sua profissão para a defesa de um réu que acredita ser inocente. Obviamente há a construção de herói por parte da filha, que é a personagem narradora, mas é preciso ler o livro com algo em mente: seu ato não deve ser elevado ao mais alto grau de altruísmo. Deve ser entendido como uma ação correta para alguém que acredita na igualdade entre negros e brancos. Friso esse aspecto em face à resenha online do livro publicada pelo The Guardian, que frisa excessivamente a importância desse personagem branco. O foco do livro é outro e deve recair sobre a segregação racial.

Muitos leitores perceberão que a capacidade de abordagem da autora sobre racismo é limitada pelo seu lugar de fala: é uma mulher branca que não esteve envolvida com os movimentos sociais de reivindicação de direitos. Essa posição lhe é inerente, mas não a impediu de abordar o tema de maneira delicada dentro de uma excelente narrativa que certamente abalou a cultura racista norte-americana.

  1. Margaret Michell, por exemplo, autora de …E o vento levou, também integra o grupo de grandes escritores de um livro só.