Quando Memórias de minhas putas tristes foi publicado, em 2004, se desencadeou um verdadeiro frenesi nas ruas da capital colombiana. Tem-se notícia que antes mesmo da publicação oficial, circulava uma versão pirata pelas ruas de Bogotá, uma que continha menos páginas e na qual o desfecho da trama era até diferente, mas que, apesar desses contratempos (menores, dadas a estatura e a popularidade do escritor) era devorada pelos dedicados leitores de “Gabo”.

Apesar desse intempestivo exemplo de acolhida calorosa, a recepção do livro encontrou opiniões divididas, tanto da crítica quanto do público, motivo que vale algumas linhas e que, ao fim e ao cabo, parece lançar alguma luz sobre aquele que foi o último livro de Gabriel García Márquez.

Havia se passado dez anos desde o último trabalho de ficção de Gabriel García Márquez (Do amor e outros demônios, 1994). E essa década, aliás, testemunhara uma guinada considerável do escritor na direção da crônica e da não-ficção em geral, pois se a década anterior (1984-1994) vira nascer dois romances e duas coletâneas de contos, esta contava apenas escritos daquela outra natureza. Além disso, cabe mencionar que fazia somente dois anos que o primeiro volume de sua autobiografia tinha chegado às livrarias (Vivendo para contar a história, 2002).

A novela de pouco mais de cem páginas, portanto, veio para ocupar esse lugar não muito acolhedor: prometia ser uma volta (quiçá triunfal e longamente aguardada) de García Márquez ao terreno da ficção, ou, então, no mínimo, uma continuação da seu relato autobiográfico. De certo modo Memórias de minhas putas tristes é um pouco das duas coisas. Mas também não é precisamente nenhuma delas.

Reservo-me o direito de dizer, como suspeita, de que o livro em questão tinha qualquer coisa daquela traquinagem com que García Márquez gostava de desnortear os críticos. Em entrevista a Plínio Apuleyo Mendoza, o escritor colombiano confessou (1) desgostar das exegeses dos críticos (OK, nada de novo aqui); e (2) ter colocado deliberadamente uma referência a Rabelais em Cem anos de solidão como uma “casca de banana para os críticos” (o termo é do próprio García Márquez). Suspeito que debaixo das inúmeras trilhas de referência e de alusão que se desdobram a partir de Memórias de minhas putas tristes haja alguma “casca de banana” ardilosamente colocada. E suspeito que a execução desse ardil, ou o esforço de preservação das críticas literárias, contribuiu para que o livro fosse recebido de maneira dúbia.

Vejamos.

A situação-limite que desencadeia a trama da novela pode ser resumida numa sentença curta: no seu aniversário de 90 anos, o cronista jornalístico que narra o livro diz que, como coroação de uma vida de relações carnais exclusivamente pagas, quer presentear-se com uma noite de paixão com uma virgem. Dessa resolução até o desfecho da história testemunhamos o nonagenário ir desenvolvendo uma bizarra, contudo romântica, relação de amor para com a jovem virginal. Eis o enredo.

García Márquez contava 77 anos em 2004, o que o coloca numa situação etária parecida com a do narrador do livro. E como ambos são resultado de uma vida inteira de dedicação à escrita e à cultura, a narrativa deliciosamente fluida do personagem tem muito do talento literário do escritor. Além disso, García Márquez morou num bordel durante sua juventude de jornalista, o que, digamos, lhe forneceu uma posição bastante privilegiada para falar de assuntos relacionados ao mundo da prostituição, da sedução paga e das paixões carnais, bem como de suas protagonistas, as quais contabilizavam 514 aparições distintas nos registros sexuais do protagonista. Ele vangloriava-se, inclusive, de jamais ter dormido com uma mulher que não tenha sido paga de algum modo.

O momento em que esse narrador resolve contar sua história é o momento, mais ou menos próximo, de seu crepúsculo. No emaranhado de eventos que constitui sua vida pregressa, ele vai selecionando e enfeixando alguns fios para nos fornecer algo como um retrato coerente de sua trajetória (pouco edificante): uma criação confortável, num casarão colonial amplo, com uma matriarca onipresente e uma educação humanista fecunda, seguida de uma juventude e maturidades dissolutas, recheadas de um constante cultivo cultural que o colocou sob o abrigo da erudição e das finezas intelectuais, garantindo-lhe um eterno emprego de cronista num jornal da cidade. O protagonista parece dolente, folgazão, e um bon vivant, patriarcal apesar das goteiras do casarão e do racionamento de recursos a que se submete eventualmente, sob a pena de ter que tornar-se um estóico – fato que seria uma verdadeira tragédia, dada sua natureza.

Olhando desse modo, não parece haver motivos fartos para que ele nos cause grande empatia. É provável que com os patrulhamentos moralistas de hoje em dia, talvez até nos convencêssemos de reduzi-lo a dois ou três adjetivos: machista, egoísta, chauvinista etc. Contudo, dado que é ele quem nos apresenta sua trajetória, e como, felizmente, ele não parece querer sacrificar-se como espelho de virtude, somos levados a uma suave tolerância para com seus hábitos, quem sabe até uma ligeira complacência (uma culpada simpatia?) com seu modo de vida profano, e o regalo pecaminoso que ele reivindicava para si.

Seduzidos gradativamente à contemplação de sua vida ora hedonista, ora decadente, não poderia deixar de nos espantar o fato de que ele se recusa a deflorar a virgem de catorze anos, preferindo observá-la em seu sono profundo e batizá-la de Delgadina. A cafetina que arrumou a encomenda do narrador diz que banhou-a, perfumou-a e inebriou-a com brometo de valeriana, mas que concorria para seu sono profundo também o fato, demais mundano, de que ela pregava botões numa fábrica durante o dia. O fato encanta o nonagenário, excitado, deixando-o como que hipnotizado pela cena insólita que tem diante de si, ao passo que busca recriá-la seguidamente ao longo de um ano, mantendo-se nela sempre um surpreendente celibatário.

Qualquer coisa de pedofilia, e de uma insinuação necrofílica, se fazem presentes naquele ritual, criando uma certa atmosfera perturbadora. O ato carnal indefinidamente adiado, no entanto, preserva (bizarramente) uma certa aura de pureza, donde advém o romantismo enviesado que se desenrola dali em diante. O velho protagonista se perde de amores pela jovem adormecida, transforma suas crônicas jornalísticas em relatos de amor que encantam os leitores, e passa a ser acometido dos sintomas típicos (e piegas!) de uma paixão juvenil – cujo efeito de pieguice se realça pelo contraste com suas cãs de noventa primaveras.

Diante disso tudo, fica-se tentado a buscar referências na fábula da Bela Adormecida (a epígrafe da novela vem de A casa das belas adormecidas, de Kawabata), mas há algo de distinto ali (alerta de “casca de banana”!). O amor romântico, naquela louca erotização eternamente postergada, encontra na diferença de idade dos dois e no “nome” da jovem virginal, Delgadina, uma aproximação muito forte, talvez igualmente perturbadora, de um amor paternal – a lenda do século XIV conta a história de um rei que se apaixona por uma de suas filhas (outra “casca de banana”?).

Ou seja, por um lado, talvez queiramos enxergar ali uma reedição latino-americana do clássico conto de fadas da pobre moça que só pode ser libertada de seu feitiço soporífero pelo beijo de seu verdadeiro amor. Por outro, somos compelidos a enxergar naquele grotesco-sublime amor uma espécie de compensação, algo redentora (porque não consumada), de uma vida de muitas acompanhantes, mas de nenhuma família. Nenhum dos dois parece ser realmente convincente: na primeira hipótese o verdadeiro amor nunca aparece e a menina nunca desperta, o que é um anti-clímax interessante mas uma sensaboria; na segunda, o arco catártico é um pouco mais interessante, pois nela uma vida dissoluta e estéril (do ponto de vista da descendência) é recompensada por um amor cativante, mas ao mesmo tempo punida pela impossibilidade de ele ser consumado sob a pena de virar uma aberração incestuosa – densidade trágica dotada de uma gravidade muito mais europeia e pouco afeita à atmosfera dramática de García Márquez.

Talvez ambas tenham seu quê de correto, mas não sem que ajustemos nosso prisma. E para isso temos que reformular nossa pergunta (com a impaciência que lhe é devida): sobre que cargas d’água é, então, Memórias de minhas putas tristes?

A “casca de banana” da novela, creio que não intencional nesse caso, é a relação que domina a cena e ludibria os leitores. Memórias de minhas putas tristes não é um livro sobre o poder redentor do amor ou sobre uma Lolita antilhana ou caraíba, embora creio que ele possa ser lido como tal. Trata-se de um livro sobre envelhecer e, nesse ínterim, sobre o sentido de ter chegado até aquele ponto. Por isso é que o tom é de relato memorialístico (e melancólico), é por isso que as “putas” são “tristes”, e é por isso, curiosamente, que a relação com Delgadina é o ponto central do livro.

O formato de relato de memórias é a solução narrativa ideal para o espírito de contemplação que permeia a (volto a dizer) sublime narrativa do livro: trata-se de um nonagenário que, no momento de seu crepúsculo, se debruça sobre sua vida. As “putas” são “tristes” porque na efemeridade mercantil dos encontros, apesar de seus folguedos imediatos, o vácuo emocional e existencial prevalece no longo prazo: as “putas” são vítimas dessa prostituição mas ele também se prostituiu, ainda que a seu modo. Finalmente, a relação com Delgadina é aquilo que domina cada centímetro do palco narrativo porque catalisa uma espécie de epifania tardia: é através da lente daquele estranho amor, bizarramente casto, que a vida dissoluta pretérita e a decadência presente passam a poder ser explicados e fazer sentido. Não em nome de uma justificação de natureza moralista, mas por seu filosófico poder de conclusão e de encaixe ontológico.

Com o redemoinho das impressões assentando-se novamente no chão, podemos finalmente apreciar com mais clareza esse monumento que é o Memórias de minhas putas tristes.

Crentes da centralidade daquela relação insólita entre o narrador e a virgem, buscávamos na novela a beleza primaveril e pulsante do amor que rejuvenesce e que, como costuma-se dizer, “não tem idade”. Agora podemos ver, pelo contrário, que a beleza da novela é outonal e contemplativa, dada a sobriedades e não a arroubos. O amor do velho e da virgem não rejuvenesce, não alimenta essa patética ilusão, o que ele faz é restituir a dimensão essencial da idade para além do cômputo dos anos. O tema da decadência e da decrepitude, um das notas-mestras da ouevre de Gabriel García Márquez, presente nas infindáveis chuvas que mofavam Macondo, nos augúrios de morte d’O outono do patriarca, e nas goteiras do casarão e nas estante carcomidas da novela em questão, encontra aqui expressão lírica por meio da vida do próprio escritor, também em seu estágio outonal. Em outros termos: estamos diante de um livro sobre a degenerescência escrito pelo autor que refletiu sobre ela ao longo de toda a sua produção literária, e no momento de seu próprio outono existencial!

A natureza “semi-autobiográfica” que alguns críticos ressaltaram na novela, e que parece tê-los dividido, tem a ver com essa arrebatadora conjunção: a ficção e a realidade de Gabriel García Márquez pareciam ter-se fundido no horizonte de sua vida. Seu longo jejum de ficção se quebrava, mas sem ir muito longe de uma continuidade autobiográfica que se iniciara com o primeiro volume de suas memórias. O fato de ter sido seu último livro, e executado com a maestria impecável nas artes da palavra como o é, nos leva a especular se ele não guardou esse livro por anos nalguma gaveta obscura de sua casa, somente esperando para que ele fosse seu glorioso ponto final numa brilhante trajetória.