O livro novo de Tzvetan Todorov (1939), reconhecido teórico da literatura, da linguagem e da história, parece ser uma daquelas leituras recomendáveis a todos, especialmente nos tempos atuais. Os inimigos íntimos da democracia, lançado neste mesmo ano na França e logo traduzido pela Companhia das Letras, é uma daquelas obras que são escritas em momentos de forte tensão em que os intelectuais se veem forçados a estimular mudanças na sociedade. Acredito ser o objetivo do autor com essa obra, e espero que ela realmente contribua para o esclarecimento das pessoas em relação aos rumos que o mundo, inclusive o Brasil, toma hoje em dia.

O título da obra parece ser bem elucidativo: seu autor quer tratar dos empecilhos que a democracia encontra em si mesma para sua efetivação. A palavra “democracia” já nos remete a uma longa história vinda desde os gregos antigos e que, apesar de sua importância, parece um tanto banalizada na atualidade, ideia corroborada por Todorov. Ele, de origem búlgara, crescido em meio ao regime comunista de seu país natal e exilado na França dita democrática, parece ter uma credibilidade toda especial para tratar do assunto, o que acredito que realmente tem. Sua visão da história do Ocidente, muito bem fundamentada, apenas comprova sua posição privilegiada. Obras suas anteriores, como A conquista da América (1982), são bons exemplos de sua grande capacidade para refletir a respeito do que o mundo viveu e vive.

Em Os inimigos íntimos da democracia, o teórico búlgaro busca no pensamento cristão da Idade Média, em Pelágio e Santo Agostinho, noções fundamentais para se compreender melhor visões políticas da modernidade ocidental. Essas noções parecem ditar muito do que se disse ao longo dos séculos a respeito da sociedade, determinando-a por preceitos individualistas ou autoritários. Para além dessa dicotomia entre Estado e indivíduo, Todorov parece preocupado em estudar como a democracia criou inimigos intrínsecos a si mesma a partir desse dilema aparentemente indissolúvel. Segundo ele, o indivíduo e sua necessidade de liberdade ditaram toda a filosofia política elaborada até hoje, estando na base do pensamento de ideologias sempre colocadas como conflitantes, caso do socialismo e do neoliberalismo.

Todorov inicialmente traça um panorama histórico de certos ideais políticos associados aos conceitos pelagianos e agostinianos para então elaborar opiniões sobre dilemas específicos do nosso tempo. Sua análise das recentes guerras promovidas pelos Estados Unidos e pelos países membros do Conselho de Segurança da ONU após a derrocada comunista se mostra muito bem articulada com a história que constitui a partir da Antiguidade e da Idade Média. O enfoque, é claro, é a contemporaneidade, que se vê em novas contradições após o fim do poder do Segundo Mundo, aquele das nações socialistas. Agora quem dita as regras são os países mais desenvolvidos economicamente e tudo que sua economia demanda deve ser atendido pelas outras nações, não importando quais são os meios utilizados para que isso aconteça. As recentes incursões militares no Iraque, no Afeganistão e na Líbia a favor do livre mercado e dos “direitos humanos” demonstram como os dominadores da economia mundial não se preocupam em suprimir o outro a qualquer custo, mesmo que envolva atentados aos direitos humanos.

Também se nota no livro que a busca pela liberdade, esse conceito tão maleável, mas tão almejado para nossa realidade, parece permear todo pensamento ocidental, seja de direita ou de esquerda. Apesar de ter consciência de que a liberdade é relativa, dependente da visão de cada um, o autor se esforça a todo tempo para expor situações antidemocráticas em que ela não se aplica. Assim como no caso de “democracia”, faltou definir melhor “liberdade”, porém entendo que Todorov buscou apenas incitar uma discussão em seu livro, não resolvê-la teoricamente. Trata-se de uma obra de conscientização de um problema político e sociológico descrito a partir de fontes históricas.

Apesar de estabelecer os problemas da democracia, o autor não parece querer propor uma solução definitiva para eles ou construir um manifesto, ainda que não se prive de emitir uma ou outra opinião isolada. Sua conclusão apenas aponta para uma exaltação das vontades humanas e o fim da repressão em nome da liberdade de uns, além da indicação de uma possível solução democrática vinda da própria Europa. É interessante também notar que o capitalismo não é colocado em evidência ou até mesmo o anarquismo, citado apenas em um parágrafo, o que poderia indicar pontos não tão explícitos assim da posição política própria do autor.

Pessoalmente, digo que não concordo com um ou outro ponto posto por Todorov, mas é fato que os questionamentos por ele incitados são muito válidos para o leitor contemporâneo. Seu livro foi bem recebido na França, país no qual o livro foi publicado e ao qual o autor se refere a toda hora ao longo do texto. No entanto, a problemática social e política que é desenvolvida também serve para o leitor brasileiro em sua essência por tratar de questões muitas vezes mundiais. O cenário delineado de avanço do autoritarismo, do neoliberalismo e da extrema direita certamente é aplicável também ao nosso caso. Independente da opinião de cada um, percebe-se nesse livro que a democracia está em perigo, seja ela já existente ou apenas um projeto para o nosso futuro.