Sei que não preciso contar da pandemia e de como os dias têm sido todos mais iguais. Também não é necessário falar, embora eu tenha me obcecado em falar, sobre como ter uma cadeira boa para as costas se tornou um artigo desejado. Se você pôde continuar em isolamento até agora, transformando a casa nesse escritório 24/7 meio dadaísta e meio triste, você deve saber bem.

Passei a medir a duração do dia pela quantidade de café que ainda resta na garrafa. Funciona como uma ampulheta ao contrário para um ano que está todo do avesso. Nessa rotina, há dois tipos básicos de madrugada: as que eu fico acordada & ansiosa, e as que eu durmo pesadamente de tão cansada de ficar acordada & ansiosa. 

Em uma dessas noites de sono exausto, foi diferente. Acordei com um estrondo que durou bem seus dez, quinze segundos. Um negócio espalhafatoso mesmo. Pensei se tratar de qualquer tipo de catástrofe ou acidente: acidente aéreo, prédio em chamas, bueiro estourando, bomba, etc. Toda tragédia é pouca quando se fala de 2020, o ano em que todo mundo aprendeu a pensar sempre no pior. Ainda na cama, aguardei pelos gritos. Cheguei a pensar que talvez teria que correr sei lá para onde, mas o susto e a incerteza duram pouquíssimo: era só um trovão. O trovão mais longo e barulhento que eu já tinha ouvido, mas ainda sim só um trovão. “Que bobagem”. Ri do medo desproporcional que tinha passado, então senti o meu corpo inteiro relaxar. 

Esse trovão me gerou uma das melhores sensações que vivenciei em meses. Um alívio pleno, a capacidade de rir de si, a adrenalina seguida da calma e do silêncio. Então as coisas começaram a fazer sentido, e sim, vou usar o trovão para teorizar sobre a importância da ficção em tempos de pandemia: estamos há muito tempo vivenciando esse estado de medo permanente. O medo virou rotina, e no meio de tanta falta de controle, passar por um incômodo dosado até que pode se tornar um afago bem gostosinho. Entendi porque livros como “A Peste”, “1984” e “Admirável Mundo Novo” foram os mais vendidos da quarentena. Também entendi o porquê me afundei tanto em narrativas distópicas nos últimos tempos, bem quando a realidade em si já parecia uma invenção. 

Tem quem diga que é pelo exercício de imaginação: “Há o impulso é ver o quão ruim a situação pode realmente ficar e se perguntar se você poderia, hipoteticamente, sobreviver a isso.” (TreaAndrea Russworm). Tem quem relacione com  uma forma de preparação: “A qualidade investigativa da ficção distópica nos lembra da impermanência da realidade. Nada é tão seguro quanto pensamos que é.” (Shivani Bhasin). Mesmo assim, ainda é curioso pensar como narrativas de desesperança e medo podem causar um efeito tão catártico dentro desse contexto em que vivemos.

Insisto na questão central do controle. Ao me deparar com alguma dessas histórias, eu sei que o incômodo vai durar por aquelas páginas, sei que é só ficção, sei que é só um susto, e isso faz toda a diferença em dias em que eu não tenho certeza de mais nada. Não é à toa que os grandes filmes de terror não são sobre a assombração em si (ou et, ou assassino, você entendeu): as narrativas mais potentes são justamente aquelas que usam do gênero para falar de medos muito primordiais e, por vezes, incontroláveis. Assim, personificar o medo em um monstro é também uma forma de colocar uma corrente nele. O medo sem controle é só angustia, mas assim ele se torna um lembrete de que estamos vivos.

É claro que não só disso vive o humano em isolamento. Por isso, ao fechar o livro distópico, também me entrego a horas e horas planejando a arquitetura da minha ilha paradisíaca de Animal Crossing. Há as narrativas que estão ali para nos fazer sentir no controle, e aquelas que estão para nos desligar, como o caminho natural de uma música que tem seus momentos de tensão e relaxamento.