Nunca neguei o meu apreço pelo formato do Tournament of Books. Nesse prêmio literário, os concorrentes são julgados em duplas por críticos que decidem qual dos dois foi seu preferido e seguirá na disputa, um mata-mata até a final, quando todos os críticos do torneio decidem qual dos dois livros restantes é o grande campeão. Tem até uma rodada zumbi em que os favoritos do público retornam e tentam desbancar os finalistas. Em 2020, a instituição completou 16 anos de existência e finalmente conseguiu premiados suficientes para uma edição All Stars, com todos os campeões desde 2008. 

Aqui tivemos nossa própria Copa de Literatura Brasileira, em moldes semelhantes. Cheguei a participar como juiz da última edição, mas desanimei com os livros que peguei. Talvez o problema seja comigo mesmo (o vencedor da partida que apitei é xodó de muita gente até hoje), mas por mim nenhum deles merecia sequer estar na disputa. Não era escolha, era falta de opção  —  feito lista de escritores brasileiros mais gatos com Ricardo Lísias no meio (juro que isso aconteceu, no Twitter, há cerca de uma década).

Eu queria que os livros me empolgassem de verdade, que desse dó de eliminar um deles, como acontece numa boa partida.

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E por que estou pensando nisso? Desde que mudei para Natal, precisei me acostumar novamente com as encomendas demorando um tantinho a mais no transporte. Comprei dois livros com antecedência (um na pré-venda, o outro pelo financiamento coletivo) e mal podia esperar por eles  — tava até invejando o povo em São Paulo comentando as leituras. Quando eles chegaram foi com poucos dias de diferença, o tempinho que levei para terminar o soft-porn gay que foi minha primeira leitura do ano. E, por mais que não houvesse um prêmio literário em disputa, deu dó de escolher qual seria lido antes. 

Guenzo que sou, deixei a decisão pros seguimores do Twitter e do Instagram, que escolheram o livro do Stefano Volp. E fui de Homens pretos (não) choram.

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Ainda tava com “Principia” ecoando na cabeça quando comecei a leitura: um dia antes tinha visto o doc do Emicida, AmarElo — é tudo pra ontem. Não dava pra saber que a canção também estaria na introdução; aliás, sabia pouco do livro, que apoiei no catarse pela capa lindona. Nem tinha visto, por exemplo, que eram narrativas curtas: normalmente não me animam muito, dá medo de irregularidade, de ter que ler uns contos mais ou menos entre os que são bons de verdade, sem ninguém pra avisar antes “pula esses”.

Mas, senhoras e senhores, que livro! De devorar e desenrolar uns choros presos na garganta: nem cogitei pular algum conto, não deu tempo! O que deu foi pra pensar em muita coisa pessoal e da minha relação com pai, irmão, avô. Juntou livro com esses meus tempos potiguares e o estrago tava feito. E tudo fluiu tão bem, sabe? Tão bem que precisei economizar o livro pra durar até o café da manhã, aquela leiturinha antes de bater o ponto do trabalho.

O projeto gráfico brinca com a transparência do branco

E para não ser abstrato assim, dou uma olhada nas minhas “crônicas quarentênicas” favoritas. “Meia-noite” me fez pensar em vários dias dos pais ambíguos da infância (terapia pra que te quero!). “Barba” me pegou desprevenido: sexy e triste, sobre um moço que se descobre gostando do toque do barbeiro. Gostei do final meio feliz na trajetória do personagem (porque é sobre isso, a vida continua), mas fiquei empacado no pensamento: a custo de quanta infelicidade, né? “Sabonete” é o tipo de história que precisa ser mais contada, sobre como outra masculinidade possível e sobre como uma conversa pode ser muito mais gostosa e instigante do que uma sarrada. Iara subverte não só as expectativas de Wagner, mas também as do leitor: quantas narrativas de aventuras escolares semelhantes a essa não ignoram simplesmente o ponto de vista feminino?

O último conto, “Pio”, dá o arremate final ao trabalho iniciado por “Meia-noite”, me fazendo pensar num tanto de assunto que vem desde a infância; daria uma bota nota de rodapé, mas vai mesmo é virar papo na terapinha. As coisas não são iguais, mas tem lá suas semelhanças: interseccionalidade é o que há.

Saí do livro querendo mais, feliz por ser leitor.

E tinha mais, né? Fui correndo pegar Senciente Nível 5.

Se Emicida foi trilha sonora pra leitura anterior, foi ao som de outro feat da Pabllo que fui pro livro da Carol: coloquei “Modo Turbo” pra tocar umas 5, 19 ou 57 vezes enquanto saía dum universo pro outro. E combinou: “Vem comigo quem aguenta essa porra a noite toda” é a epígrafe o pedido que a autora faz a quem inicia seu novo romance.

Essa questão de ritmo foi uma coisa que me surpreendeu positivamente, inclusive. Não sei se não li Porém Bruxa do jeito certo (na época praticamente só lia no metrô, às vezes a caminho do rolê, tentando atrair o interesse do boy) ou se esse é um grande trunfo do livro novo. Só sei que ele fez por merecer um daqueles adesivos de “unputdownable“.

E é isso: “she came and she did what needed to be done”, como diriam em Legendary, o reality de voguing. Simples assim. A narrativa é em terceira (ou nyxeniana) pessoa e os capítulos curtinhos alternam a proximidade do olhar entre Teo e Lin, nos capítulos pares e ímpares, respectivamente. O humor desse pêndulo narrativo rende bons momentos e as farpas trocadas pelos personagens servem muito bem à defesa dum dos pilares do romance: o de que o saber científico é importante, divertido e (por que não?) sexy. Há uma clareza de construção de universo que o leitor vai desvendando em conjunto com toda a ação (que já começa na introdução in media res) e com todo o suspense, cheio de subversão de expectativas. Ah, e as cenas sense8 mais pro final (não é nada disso que você está pensando) pedem a direção das irmãs Wachowski para a adaptação cinematográfica.

Citei Legendary porque essa foi a sensação que me deu. Quando eu passava de um capítulo para o outro, devorando, parecia que Chiovatto tinha um checklist de coisas que eu acharia muito legais e só foi ticando. Uma leitura deliciosa que termina com um bom posfácio, que me fez conhecer o instigante conceito de hopepunk.

Mas e aí, Tuca: quem ganhou o torneio imaginário no final das contas?

O grande vencedor foi: o leitor brasileiro, que pôde começar 2021 com duas leituras excelentes!