Primo Levi, ao ouvir perguntas a respeito de sua tatuagem, ou por que não a removia, respondia que não havia muitos no mundo que carregassem aquele testemunho. Os números em seu antebraço eram tão parte de seu ser quanto as memórias de Auschwitz, não faria qualquer sentido apagá-los.

É com essa citação do escritor italiano que Numerado começa e estabelece seu tema: o testemunho do Holocausto, a memória do inferno materializada naquele conjunto de números tatuados nos braços dos sobreviventes. Uma das entrevistadas diz: “eles te tiravam tudo, seu nome era a última coisa que lhe tiravam”.

Quase todos os entrevistados sabem seu número de cor. Alguns são surpreendentemente baixos e despertam curiosidade a respeito de como alguém levado tão cedo para o campo pôde sobreviver; a maioria é alta o suficiente para se imaginar que essas pessoas foram levadas em 1943 ou 44, época em que a maior parte dos sobreviventes foi deportada. São números próximos do de Primo Levi, levado a Auschwitz em 21 de fevereiro de 1944, meses antes do fim da guerra. No entanto, não se ouvem histórias de sobrevivência, quase nenhum dos retratados fala sobre sua época em um campo de concentração, o que deixa claro que Numerado não é um documentário sobre o que ocorreu, mas sobre a forma como suas testemunhas convivem com essa memória.

Em iídiche e hebraico o Holocausto é chamado de Shoah, “a calamidade”. Enquanto a palavra de origem grega carrega um sentido sacrificial, mesmo de purificação, o termo escolhido pelos próprios judeus nega qualquer associação positiva. É uma tragédia, sem precedentes e sem comparação, que esbarra nos limites daquilo que se pode expressar.

Uma das entrevistadas diz que não pode dizer seus números em hebraico; a maioria deles os recita em alemão, como um verso ou uma oração que tivessem memorizado. A impressão que se tem às vezes é que esses números eram a única prova de que continuavam vivos, de que existiam, e hoje são a grande prova daquilo que viveram.

O documentário de Uriel Sinai e Dana Doron não parece fazer muito mais do que sentar seus entrevistados em frente a um fundo preto e deixar que eles falem, mas faz, e revela seus diretores estreantes como excelente documentaristas. Embora isso não apareça diretamente, é possível perceber uma escolha cuidadosa das perguntas e o respeito ao tema que cada retratado precisava para contar sua história. Em momento algum os diretores tentam transformar seus personagens em vítimas ou heróis, eles apenas querem saber como se vive com uma memória tão monstruosa.

As respostas são variadas: há um senhor enérgico e otimista que, tendo visto a morte tão de perto, não tem medo de morrer; há a mulher que, além de tudo, teve o filho aleijado na guerra do Yom Kipur, é viciada em compras, possivelmente em jogo, talvez bipolar. Em hora nenhuma isso é confessado, apenas surge em sua fala, como algo que ela preferiria não contar, mas que acabou escapando por estar à vontade demais. E Sinai e Doron não julgam sua entrevistada, apenas fazem com que sua história se revele aos poucos, sutilmente, enquanto a figura excêntrica conquista o espectador.

Muito se disse sobre as possibilidades de representar o Holocausto, que o horror não cabe nos limites da linguagem e da estética, que apenas podemos “sair pela tangente”, representar como quem olha com um espelho, o que seria o caso de obras tão diferentes quanto A Lista de Schindler, Maus e Numerado. Em Noite e Neblina, Alain Resnais não disfarça sua repugnância quanto às imagens que exibe, nem esconde sua vontade de olhar para o lado, mas afirma que tudo isso será esquecido, e quando for esquecido acontecerá de novo, portanto é preciso lembrar.

Numerado segue à risca a afirmação de Resnais: o filme olha para o lado, evita ouvir as histórias de sobrevivência (“mas como você sobreviveu?”, eu aprendi, é uma pergunta que não se faz e que sempre traz uma resposta que ninguém quer ouvir), evita falar dos campos. Mas reforça a importância da memória, do testemunho e da prova material de que tudo isso realmente aconteceu: o filme mostra uma mulher que tatuou o número do pai e um jovem que fez no antebraço os números do avô. Emocionado, o avô pergunta “é para que todos se lembrem?” e o neto responde “é para que eu me lembre de você”, mas o senhor finge não ouvir e repete “é pra que todos se lembrem”.

É um documentário sobre a lembrança feito para que todos se lembrem. Para que alguns saibam que ainda andam por aí algumas, poucas, pessoas com tatuagens azuladas no braço que são, como um dos senhores do filme diz, “vindas do lado de lá”.