Agustín Fernández Mallo é um escritor espanhol, formado em Física, com diversos livros de poesia publicados, nos quais busca estabelecer um diálogo entre arte e ciência. É um dos maiores expoentes da Generación Nocilla (“nocilla” sendo o nome de um produto similar ao mais conhecido Nutella), que tomou como referência o seu Nocilla Project, trilogia de livros que escreveu entre 2006 e 2009.

Nocilla Dream, primeiro livro da série, tem 113 microcapítulos com diversas histórias cruzadas, que misturam referências à cultura pop e ao erudito. O livro chega dia 27/3 às livrarias pela Companhia das Letras.

Abaixo você confere um trecho:

“É lógico, num bordel há moças de todos os tipos, e ainda mais aqui, no deserto de Nevada, cuja monotonia, a mais árida do Meio-Oeste americano, tem de ser aliviada com determinados exotismos. Estão maquiando Sherry no backstage improvisado na parte de trás, junto ao antigo poço agora seco. Ela não confia no grande espelho emoldurado com lâmpadas que lhe deram e, como quando algum cliente chega de surpresa, recorre ao retrovisor de um Mustang já quase transformado em sucata. O sol e a neve foram comendo o carro desde que ali foi deixado por um homem que ela nunca voltou a ver. Chamava-se Pat, Pat Garret. Chegou numa tarde de novembro, com a última temperatura moderada, pediu uma moça, a mais jovem, e Sherry se apresentou. Pat tinha um hobby: colecionar fotografias achadas; qualquer uma servia, desde que mostrasse figuras humanas e fosse achada; viajava com uma pasta cheia. Estirados os dois na cama, ele lhe contou, enquanto olhava um ponto fixo na parede, que depois de ter trabalhado num banco em L. A., havia recebido uma herança inesperada, de modo que largou o emprego. Seu apego às fotografias vinha do banco, pelo fato de ver tanta gente; sempre imaginava como seria o rosto, o corpo dessas pessoas em outro contexto, para além do guichê, que também era como a moldura de uma fotografia. Mas, depois de receber a herança, seu outro vício, o jogo, havia levado o homem a perdê-la quase totalmente. Agora se dirigia ao Leste, a Nova York, em busca de mais fotografias, Aqui, no Oeste, sempre andamos às voltas com as paisagens, disse, Mas lá tudo são retratos. Sherry não soube o que dizer. Pat abriu a pasta e foi lhe dando as fotos. Ao desembaralhar um dos maços, Sherry encontrou o inequívoco rosto de sua mãe. Sorria agarrada a um homem que, entendeu, era o pai que nunca chegara a conhecer. Caiu sobre o peito de Pat e abraçou-o com força. A partir daí, ele ficou muitos dias mais, Sherry já não lhe cobrava, preparava-lhe a comida e os dois não saíam do quarto. Na noite em que Pat foi embora, o Mustang não pegou, mas ele conseguiu parar um caminhão que ia para o Kansas. De manhã, depois de descartar a hipótese de que ele houvesse caído no poço ou ido a Ely comprar cigarro, ela se pôs a esperá-lo até o anoitecer, com a vista fixa no último ponto divisável da us50. Quando não aguentou mais, começou a chorar, sentada no capô do Mustang. Retoca os lábios no retrovisor e a maquiadora avisa, Entramos no ar em um minuto! Nevada tv faz o especial Prostituição na Estrada. Aproximam o microfone e perguntam, De que você se sente mais orgulhosa, Sherry? O amor é um trabalho difícil, responde, amar é a coisa mais difícil que já fiz em toda a minha vida.”