É consenso que um dos méritos de Machado de Assis com o livro Memórias Póstumas de Brás Cubas é ter produzido uma obra que se distancia das histórias/narrativas triviais. Esse distanciamento é apresentado ao leitor desde a dedicatória da obra, quando o defunto-autor, Brás Cubas, decide, na forma de um epitáfio,  dedicá-la a um verme: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas Memórias Póstumas”.

A partir dessa dedicatória, os leitores são levados para o campo de significação de se ter, como narrador, um morto: isto é, são apresentados a um lugar privilegiado, de onde o autor-defunto tece reflexões  sobre a decomposição da sociedade burguesa, enquanto o seu próprio cadáver se decompõe. Tudo isso, marcado pelo humor negro, pela ironia, e por tantas outras características que tornam os textos machadianos únicos.Memórias Póstumas de Brás Cubas, obra pertencente ao estilo de época Realismo, se distancia das narrativas triviais, românticas, (referente ao estilo de época Romantismo) por diversos motivos, entre eles, podemos citar o fato inusitado de uma narrativa em primeira pessoa, na qual o narrador é um defunto- autor que se põe a contar como foi  a sua vida na sociedade em um tom autobiográfico, após a sua morte.

Nas narrativas românticas, geralmente o ponto de vista era centrado na 3ª pessoa, o que nos remete a ideia de haver uma distância entre o narrador e o episódio, no qual o que se relatava era a vida da sociedade burguesa – suas festas, triunfos, os amores impossíveis, por razões religiosas ou morais, o amor como redentor, entre outros.

Em contrapartida, Memórias Póstumas de Brás Cubas é narrado em primeira pessoa, o que nos causa a impressão de que, desse modo, Machado de Assis pretende inspecionar a complexidade das personagens, revelando seus conflitos, medos, vícios, entre outros.

Brás Cubas, o narrador, coloca as instituições burguesas abaixo, mostrando a podridão dessa sociedade. Ao fazê-lo, é como se ele dissesse: “É verdade, eu fazia parte dessa podridão”, embora ele só a tivesse denunciado após a morte, o que evidencia, desde o início do romance, o  tom irônico como um de seus fios condutores.

Os Romances românticos, tinham como tema central, a relação afetiva, amorosa com o outro, com a  qual o burguês se divertia, uma vez que via sua história sendo protagonizada por outros iguais a ele. Já nas Memórias, Machado centra-se no homem em si, desnudando o seu tédio, o ódio, e o egoísmo, que são reflexos da sociedade em que ele vive.

Enquanto nas narrativas românticas o amor era o fator que redimia, era o tema central que desencadeava o enredo, em Memórias Póstumas, um dos temas centrais pelo qual o enredo da narrativa se desenvolve é o dinheiro. Marcela amou  Brás “durante quinze meses e onze contos de réis”, Dona Plácida, que “não gostava de mexericos”, se desviou de sua “boa conduta”, e aceitou ser “mediadora de amores adúlteros” por causa de dinheiro.

Em Memórias Póstumas, a sociedade burguesa é mostrada em sua essência, cheia de vícios, imersa em uma podridão, o que se evidencia através do corpo de Brás (que, em vida, era um burguês). Com o passar do tempo, o seu  corpo vai entrando em estado de putrefação, o mesmo acontece com a sociedade no percurso da obra; enquanto o leitor caminha, auxiliado pelas “pernas” de Brás Cubas, pelas páginas do livro,  percebe o processo de decomposição da sociedade burguesa.

O enredo das narrativas românticas se desenvolvia em torno de feitos heróicos, que davam uma característica de ação a história, enquanto que em Memórias Póstumas, Machado de Assis, através de alegorias, anedotas, entre outros, privilegia a reflexão em detrimento da ação.

As personagens femininas românticas eram frágeis, perfeitas, virgens, vistas como anjos ou santas. Se elas cometessem algum deslize, morriam. Já em Memórias Póstumas, as personagens femininas são “tortas”, moralmente, no caso de Virgília – uma adúltera, hipócrita e falsa – e, no de Eugênia, além de moralmente- por ser extremamente orgulhosa –  fisicamente, por ser coxa.

Diferentemente das narrativas do Romantismo, que exaltavam características físicas de suas personagens – “Iracema, a virgem dos lábios de mel” – e possuíam uma linguagem carregada de adjetivos, como em Senhora, de José de Alencar,  obra na qual a personagem Aurélia é chamada de: estrela, rainha, deusa, entre outros,   as Memórias centram-se no psicológico das suas personagens, tirando as “máscaras”, o “rosto social”, de cada uma delas, analisando-lhes o caráter, ou melhor, a falta dele, além de ter uma linguagem essencialmente estruturada em substantivos.

Ainda acerca das oposições existentes entre os livros românticos e Memórias Póstumas de Brás Cubas, é importante salientar a questão da flor. No Romantismo, ela era utilizada como metáfora para representar a beleza da protagonista romântica, contudo, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, ela representa, sobretudo, o fruto da podridão em que a sociedade burguesa está imersa, o que lhe confere um valor pejorativo.

Além de diversas outras significações, a flor, nessa obra, pode ser entendida como uma metáfora para rebaixar o homem a condição de planta, pois, conforme a filosofia aristotélica, a flor, sendo uma planta, está em uma escala evolutiva, abaixo dos animais, o que reduz a condição do homem burguês, a insignificância. Nessa perspectiva, ser chamado de flor é ofensivo.

Em suma, podemos dizer que Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, se distancia das narrativas triviais (românticas) porque estabelece um contraponto ao comportamento social estereotipado, predominante no Romantismo. Comportamento caracterizado, pela exaltação da sociedade burguesa, dos feitos heróicos, entre outros.

Para tal, Machado de Assis, por meio do defunto-autor, Brás Cubas, tira as máscaras da sociedade burguesa, desse modo permitindo que ela seja visualizada como realmente é: impregnada pela inveja, avareza, hipocrisia, pelo orgulho, e tantos outros deslizes humanos.

Brás Cubas, o protagonista, sendo um narrador morto, torna-se livre dos entusiasmos e desilusões dos vivos, permanecendo indiferente à opinião alheia, dispensando o que promulgam as leis da convivência social e os preceitos morais, desse modo, fazendo com que “o lugar do morto, nesse aspecto, seja o lugar privilegiado para desvendar o verdadeiro sentido dos atos humanos ((CARVALHO, Maria Aparecida Oliveira de. Representações de diálogos dos mortos na literatura ocidental. Tese: Doutorado: UFMG, 2003.)) “.

Desse lugar, o narrador (e/ou o autor implícito), demonstra sua descrença absoluta na sociedade, tece críticas a ela, e, no último capítulo da obra, intitulado “Das negativas”, deixa evidente seu niilismo: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Sobre o autor:  Cleonice Machado é mestranda em Literaturas de Língua Portuguesa, com ênfase em Literaturas Africanas. Acredita que isso seja informação demais. Para o caso de não ser uma overdose de informações, é, também, apaixonada por Futebol e Política. Quando não está no Mineirão, assistindo aos jogos do Clube Atlético Mineiro, ou nas ruas, militando, é professora de Literatura. Mas, sem ingerir quantidades cavalares de café, “não sou nada, nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”. Vocês a encontram no twitter como @cleoamachado .