É fato que cada leitor se sente um pouco senhor da história ao encontrar através dela algum reflexo de si próprio, seja por afinidade ou por oposição. Quando fechei o livro me entreguei a um exercício que creio ser costume de muitos leitores: contemplar os ecos da história em seu próprio espírito e olhar para o nada.

Escrever uma resenha de um livro do Ian McEwan requer atenção e me incomodou por vários fatores, mas principalmente porque acho difícil analisar esse livro sem incutir em pelo menos alguns spoilers, então decidi dividir essa resenha em duas partes, a primeira, essa que vocês estão lendo nesse exato momento, está devidamente saneada de spoilers, enquanto a segunda contém análises que não necessariamente pressupõe a leitura, mas que podem, por revelações acerca da obra, diminuir o elemento-surpresa da leitura.

Parte I

Ian McEwan é um dos grandes nomes da literatura contemporânea, Reparação (2001), Sábado (2005) e Solar (2010) são tidos como grandes obras da contemporaneidade. Me sinto, pois, na obrigação de mergulhar um pouco mais a fundo na obra para compreender aonde os rumos loucos da história podem nos levar, o que não poderia fazer sem “tropeçar” em alguns spoilers.

O jardim de cimento foi publicado em 1978 e traz uma história sem grandes reviravoltas, um tanto constante, mas que nem por isso deixa o leitor tranqüilo, pois testa constantemente seus moralismos e a sua capacidade de deglutir os escritos do autor e chocar-se com suas próprias concepções. Conhecemos uma família comum, pai, mãe e quatro filhos (Julie, Jack, Sue e Tom), recebendo em sua casa sacos e mais sacos de cimento para a construção de um jardim. O pai, embora austero, gostava de fazer piadas com cada membro da família, mas não gostava que lhe dirigissem qualquer tipo de chacota ou brincadeira.

A estrutura familiar passa por modificações conforme os eventos vão se sucedendo e os filhos são obrigados a abandonar a inocência com brusquidão, sendo lançados em um mundo diferente do que aquele em que viviam, muito mais árido e duro.

Ian McEwan cria uma situação que pode soar bizarra ao leitor, investindo contra suas percepções da vida familiar e fazendo-o repensar a respeito disso, em como uma família pode se organizar e até que ponto ela está preparada para agüentar os solavancos que a vida dá.

A naturalidade kafkiana com que certas eventos vão se sucedendo e sendo encarados pelos personagens choca, mas permite observar a variedade dos sentimentos por outro prisma e compreender que há sempre uma correspondente contrária para cada sentimento e sua causalidade. Um dos pontos fortes do livro, e que lhe confere mais singularidade, é o fato de a história ser narrado por Jack, um garoto de 15 anos que junto com as mudanças de sua vida familiar, passa pelas mudanças da puberdade.

Assim, aos leitores, o livro não é profundo na sua metafísica ou seu existencialismo, mas sua visceralidade e as questões subjacentes a cada evento que soa absurdo e plausível ao mesmo tempo, deixam lacunas propositais, para que a atividade de contemplação pós-leitura seja mais rica e produtiva.

Parte II

Se você chegou até aqui é porque ou já leu o livro ou resolveu encarar os spoilers assim mesmo. O pai de Jack, o paradoxal piadista austero, planejava construir um estranho jardim, que nunca chegou a ser acabado por conta de sua morte, (a qual o narrador tem a impressão de ter tido algo a ver) e que permanece como símbolo de sua ausência até o final da trama. A austeridade dele se refletiu no jardim, inconcluso, que não possuía flores nem plantas, mas somente terreno semi-organizado, mas que jazia abandonado, quando, geralmente, é leve e descontraído.

A mãe dos quatro irmãos, convalescente, alerta Jack acerca de uma possível “ida ao hospital” da parte dela, sendo necessário que ele e Julie, os irmãos mais velhos, se encarregassem da família para que essa não fosse desfeita e eles fossem encaminhados às mãos do serviço social. A doença da mãe a leva desse mundo e os filhos são obrigados a lidar com um cadáver e com a necessidade de ocultar a morte da mãe. Um velho baú do pai, o resto dos sacos de cimento e o porão servem de esquife para a mãe, que ganha uma mortalha de cimento e permanece no porão da casa, longe do conhecimento de todos. Assim, a família permanece unida, mas aos frangalhos.

Julie faz as vezes de mãe, porém fechada e estourada, não consegue lidar de forma satisfatória com os demais irmãos. Jack, que não toma banho e se recusa a adotar quaisquer outros métodos de higiene, também não demonstra paciência e tato para lidar com seus irmãos. Sue vive às voltas com seus livros e Tom vive os desafios do universo infantil, como valentões na escola e a falta da mãe.

Dessa narrativa macabra e bizarra, McEwan, pelos olhos de Jack, mostra como a falta da mãe, apesar da tristeza e da saudade, traz ao mesmo tempo uma sensação vertiginosa de liberdade. A solução absurda do caixão de cimento soa inadmissível, mas tem uma lógica plausível, apesar de incômoda. Apesar das turbulências de uma casa desarrumada, da falta de uma autoridade centralizada e de referências paternas, os quatro vão mantendo-se vivos e aprendendo a lidar com seu cotidiano aos trancos e barrancos, de modo que a certa altura, Julie chegue a dizer que nem se lembra mais de como era quando sua mãe era viva.

Outra situação estranha, porém com uma lógica peculiar é a escolha de Tom, o irmão mais novo, por vestir-se de mulher. Ele apanhara na escola, e disse que meninas não apanham, logo, apesar das implicações sociais de se travestir de mulher (que ele desconhece), parece muito lógico e sensato vestir-se de mulher e não apanhar mais.

A atração latente entre Jack e Julie, que acaba se consumando em um incesto muito natural para os dois é outro dos pontos em que o estranho e o natural se confundem, e através da prosa corajosa e contundente de McEwan ganham espaço e agitam com os neurônios dos leitores, que procuram entender o que se esconda por trás dessa relação.

O jardim de cimento possui uma narrativa que versa sobre a desestruturação de uma família e a conseqüente necessidade de que os filhos tomem o lugar dos pais (talvez aí repousa a naturalidade com que a relação de Jack e Julie foi encarada pelos dois: eles eram uma espécie de “pais precoces” para seus irmãos), decretando o fim da inocência e a entrada precoce no mundo descolorido e árido da vida adulta: dos nostálgicos e alegres bosques infantis para o jardim de cimento do mundo adulto.

A transição nada fácil, que exigiu renúncias de toda a espécie e a manutenção de um equilíbrio digno de corda bamba, é indício de que, caso o sepultamento da mãe no cimento não tivesse sido levado a cabo, talvez a união não tivesse sido mantida. Talvez esse seja o ponto nodal do romance de McEwan: a obstinada luta pela manutenção da união familiar, que, mesmo tendo desdobramentos absurdos e caminhos tortuosos, reflete a persistência dos jovens, que é quebrado pelas luzes giratórias dos carros de polícia entrando pela janela do quarto. Justamente quando é feita uma denúncia sobre o cadáver na mortalha de cimento. O autor fecha a obra deixando espaço para o leitor tirar suas próprias conclusões.