Na morna rotina da Hollywood atual, se há alguém que parece ainda ter colhões, esse alguém é Kathryn Bigelow. Primeira mulher vencedora do Oscar de melhor direção, por Guerra ao Terror (2008), Kathryn finca ainda mais profundamente suas garras nas feridas dos EUA, reconstruindo com altas doses de polêmica o longo processo de localização e morte do terrorista Osama Bin Laden.

Enquanto Steven Spielberg tentou (sem sucesso) reaprender a fazer Cinema com sua insossa cine-ode-biografia do sagrado Abraham Lincoln, e Argo, de Ben Affleck e George Clooney, arrematou seus Oscars-com-cheiro-de-lobby, Kathryn fez Cinema sério, engajado, excitante e provocador – e é claro que não agradou nem um pouco com isso.

Maya (Jessica Chastain) é uma agente da CIA que há dez anos dedica sua vida a buscar pistas que levem ao homem mais procurado do mundo, Osama Bin Laden, líder da Al Qaeda que, todos sabem, conseguiu perpetuar sua loucura extremista ao atacar as Torres Gêmeas e o Pentágono no inesquecível 9/11.

A Hora Mais Escura, até mesmo pelo título, pode parecer um filme de ação de onde se deve esperar armas, tiros e bombas. Felizmente, contudo, pende mais para a reflexão ao dar enfoque no esforço intelectual da caçada ao terrorista, acompanhando a sagacidade de Maya em lidar com as intricadas redes de poder de Washington e tentar convencer os glutões burocratas a confiarem em suas pistas. Em uma cena, vendo a desconfiança do líder da agência (o maravilhoso James Gandolfini, eterno Tony Soprano) diante da descoberta da casa de Osama e sendo inquirida sobre quem era ela, Maya responde sem titubeios: “I’m the mothefucker that found this place, sir”.

Justamente pela reconstrução minuciosa da conexão entre os pontos que levaram ao terrorista, A Hora Mais Escura pode parecer exaustivo, talvez um filme ladainha, que enrola mais do que o limite do suportável durante seus longos 157 minutos. Porém, só terá essa impressão aqueles que aqui esperarem mais um thriller de ação –  e a esses indico Argo.

Assim como é pontual e certeiro nas cenas de ação, A Hora Mais Escura também acerta seu alvo político no timing correto. O filme causou polêmica nos EUA, gerando ataques superficiais que o acusavam de ser “a favor da tortura” e “grosseiramente impreciso”, especialmente pelas brutais sequências de tortura, o “waterboarding”, que na trama se revelaram fundamentais à descoberta do principal nome em direção a Bin Laden. Além disso, a cena de um comunicado na tevê em que o presidente Barack Obama aparece negando veementemente o uso da tortura nos interrogatórios militares (mentira desmascarada nas cenas anteriores) é a crítica mais expressiva ao governo americano desde aquela época em que Michael Moore odiava as lideranças de seu país e falava mal de Bush no Oscar – bons tempos aqueles, não?

À parte das polêmicas políticas, que é melhor deixar para que os americanos resolvam entre si, o valor de A Hora Mais Escura está especialmente em sua etapa final. É claro que há espaço para uma boa dose do indestrutível patriotismo americano – certamente vez ou outra a tela é preenchida por uma bandeira tremulando a liberdade e a democracia daquele país –, mas acima disso, cumprindo um dos papéis fundamentais da magia do Cinema, o filme leva o espectador à imersão total num dos episódios mais importantes da história recente que, por inúmeros motivos, não nos foi possível acompanhar – fato que nos foi muito frustrante, nesses tempos tão midiáticos.

Através dos helicópteros, das câmeras em infravermelho no capacete dos soldados e da câmera onipresente de Bigelow, entramos na fortaleza que escondia Bin Laden (entre mulheres e crianças, como cabe bem aos covardes). Cômodo a cômodo, pelos átrios e pátios, explodindo portas, destruindo grades, entramos na casa, matando quem estiver em nosso caminho, até chegar, por fim, ao terrorista, a quem chamamos uma: “Osama” – duas: “Osama” – e na terceira vez, quando apenas a ponta de sua cabeça é vislumbrada rente à porta, atiramos impiedosamente, matando o mais impiedoso dos homens da recente história mundial.

A reconstrução de Bigelow é fenomenal, de uma dificuldade técnica incomparável, realizada com o mais alto nível de habilidade e sem relaxar no estilo. Considero como uma das cenas mais ousadas do Cinema-pipoca o vislumbre das fotos do cadáver, tiradas pelos soldados e vistas por pouquíssimos, que serviram como prova suficiente a Obama e seu entourage governamental para o anúncio da morte do terrorista.

Realização tamanha deveria ter valido a Kathryn ao menos a indicação ao prêmio da Academia, mas parece que o lobby político falou mais alto e o Oscar foi para a aventura infantojuvenil (linda, indiscutivelmente) de Ang Lee (As Aventuras de Pi).

Sustentando a ousadia de Bigelow, estão os cojones de Jessica Chanstain, que personifica essa desconhecida, porém real, mulher obsessiva que atingiu sua grande meta – mesmo que após dez anos. Muito além do que meramente uma ruiva sexy embelezando o pôster, a atriz é precisa em sua fragilidade e desconforto iníciais e em sua transmutação a uma decidida maníaca que aprendeu a jogar o jogo sujo de Washington e não sossegará até matar o barbudo desaparecido. Chega ao final destruída, e antecedendo o último fade out, vemos suas lágrimas rolarem demoradamente. Saímos da sessão com dúvida se ela chora pelo sucesso da empreitada ou pela melancolia de perceber a passagem de dez anos dedicados apenas à nefasta tarefa de matar um homem. Quem perdeu a vida afinal, Bin Laden ou Maya?

Ainda que brilhando nessa personagem não linear, Jessica também foi ignorada pela Academia (mais uma vez, lembram-se dela em A Árvore da Vida (2012), quando não foi sequer nomeada?), e mesmo sendo a única opção aceitável para a derrota de Emmanuelle Riva (de Amour), teve de ver o prêmio ser entregue à nada-de-mais Jennifer Lawrence de O Lado Bom da Vida.

Mesmo vencendo apenas um Oscar (dividido com 007 – Skyfall, na categoria de edição de som), A Hora Mais Escura deve se sustentar na memória do Cinema americano contemporâneo por sua coragem política, seu grande feito cinematográfico, sua excelência técnica e polêmica. Levantando inúmeros debates, incitando discussões, revisões, críticas e mudanças urgentes, esse filme estabelece Kathryn Bigelow como o macho-alpha do atual audiovisual americano, mostrando que há luz no fim do túnel escuro e enfadonho que é a Hollywood de hoje em dia, e que essa luz é um trem vindo em nossa direção – e a pancada será forte.