por Eliel Waldvogel Cardoso

Hugo Chávez entrou para a história. Ocupará certamente um lugar no panteão dos heróis da esquerda latino-americana, ao lado de Salvador Allende e Augusto César Sandino. Ao lado também do controverso Perón e de Fidel Castro. E talvez não tenha nunca a projeção do onipresente Che Guevara, mas por isso não podemos culpá-lo. Beatificado por muitos e demonizado por muitos outros, restará sempre o desafio de se fazer uma análise objetiva sobre o significado político e social dos conturbados mandatos de Chávez à frente de seu país.

A Venezuela que o “Comandante” deixou não é a mesma de quando ele assumiu o poder pela primeira vez, em fevereiro de 1999. Nem mesmo seu nome: a antiga República da Venezuela hoje se chama República Bolivariana da Venezuela, por sugestão do ex-presidente acatada pela assembleia constituinte de 1999. Naquela época, o sistema político do país estava em frangalhos, após uma longa crise de deslegitimação do partido da Ação Democrática (AD, de orientação social-democrata) e do Comité de Organización Política Electoral Independiente (Copei, de orientação democrata-cristã), dois partidos que dominaram o país por quarenta anos (1958-1998). A eleição presidencial de 1998 foi, durante a maior parte do tempo, disputada entre o tenente-coronel que ganhou popularidade após haver liderado uma insurreição militar fracassada em 1992, e a ex-miss universo Irene Sáez, sem outras qualificações para o cargo em disputa. Analistas se referiram às eleições como a disputa entre “a Bela e a Fera”, sendo que a Fera terminou por derrotar a Bela, esta desgastada após receber o apoio dos partidos políticos tradicionais.

Desde a campanha eleitoral, Chávez prometeu destruir o sistema político então vigente, considerado por muitos como uma falsa democracia que excluía o povo das decisões que realmente importavam, em virtude da excessiva concentração de poderes dos líderes partidários. Todos votavam, mas depois da eleição não tinham mecanismos de controle sobre as autoridades constituídas. Eleito com 56,2% dos votos, o presidente cumpriu a promessa de campanha ao convocar eleições para a assembleia que redigiu a atual Constituição do país, iniciando um movimento em direção à democracia participativa e a um maior controle do Estado sobre a economia. Desde então, Hugo Chávez foi reeleito  quatro vezes, (se levarmos em conta a vitória no referendo revocatório de 2004). Sua base eleitoral, formada pelo que chamamos de classe D e E aqui no Brasil, garantiu sempre a maioria absoluta: em 2000 (59,7%), em 2004 (59,1%), em 2006 (62,8%), e em 2012 (55,1%).

Ter o apoio da maioria da população em seu país não facilitou a tarefa de encontrar um sucessor. Chávez não pode, ou não quis, abrir espaço para a emergência de novas lideranças em seu grupo político, e logrou resolver esse inconveniente pela aprovação de sua proposta pelo fim dos limites à reeleição, em plebiscito de 2009.

Na área política, seu legado é o de um país no qual as classes populares têm acentuado envolvimento e sentido de participação, carecendo porém, de lideranças que possam de forma natural aglutinar seus apoiadores e continuar a construção do socialismo do século XXI.

A condução da economia na Era Chávez foi marcada, em primeiro lugar, pela ascensão dos preços do petróleo a patamares altíssimos. Foi um efeito colateral da emergência da China enquanto compradora de matérias primas, e também do apetite imperialista por guerras e petróleo, que ele tanto criticou. Seu projeto, e de todos os seus antecessores, de realizar a diversificação produtiva da Venezuela, ficou para depois. Em um país tão rico em petróleo, e com a estrutura de comercialização tão bem consolidada, talvez a tarefa da diversificação exija mais do que o compromisso revolucionário.

O maior trunfo de Hugo Chávez, porém, foi a consistente diminuição da pobreza e do desamparo em seu país. Apoiado pela renda do petróleo, o “Comandante” organizou na Venezuela a maior rede de apoio social que ali já existiu. Os programas sociais do governo, chamados “misiones“, projetaram-se por todas as regiões do país, levando médicos às favelas, oferecendo crédito aos agricultores, construindo casas populares, promovendo a erradicação do analfabetismo, entre outras.  Não é exatamente o socialismo, nem se poderia considerar revolucionário se não fosse a comparação com o descaso que havia antes. A pobreza poderia ter diminuído ainda mais, se não fosse pelo impacto da crise mundial de 2008, que atingiu severamente a economia petrolífera. Mesmo assim, foram mudanças importantes na condição de vida de milhões de venezuelanos.

Vitorioso em todas as eleições que disputou (e foram muitas), identificado com a causa do povo pobre de seu país, reconhecido e respeitado entre diversos líderes mundiais, Chávez conseguiu boa parte de tudo o que se empenhou para ter. Não pode, contudo, vencer o câncer, e assim descumpriu a promessa que tanto repetiu na última campanha eleitoral: “Viviremos y venceremos” – não viveu para ver o resultado de trinta anos de revolução.

A Constituição da Venezuela estabelece que devem ser realizadas novas eleições, que já foram marcadas para o dia 14 de abril. Hugo Chávez apontou seu candidato antes de deixar a Venezuela para um último ciclo de tratamento em Cuba. O nome foi de seu vice, Nicolás Maduro, cuja indicação não foi trivial: acabou com uma dança das cadeiras que já durava 14 anos em volta de Chávez. Foi também o momento em que ficou entendido que não haveria recuperação para o presidente.

Maduro é um ex-sindicalista e ex-motorista de ônibus que se destacou por seis anos à frente do Ministério das Relações Exteriores da Venezuela, antes de assumir o posto de vice-presidente no final de 2012. É experiente nas altas esferas do poder chavista e muito bem visto no exterior. Aquele famoso documento do Wikileaks, no qual uma espiã norte-americana dizia que Chávez estava para morrer, divulgado amplamente pela imprensa brasileira em fevereiro do ano passado, já colocava Maduro como o sucessor preferido pelos parceiros internacionais da Venezuela.

Na oposição, o candidato derrotado nas últimas eleições vai concorrer outra vez. Henrique Capriles Radonski anunciou em 10 de março que vai lutar “pelos pobres” da Venezuela, e mandou recado: “Nicolás não é Chávez”. Capriles, como é mais conhecido, firmou-se como liderança da oposição venezuelana após a vitória nas primárias que se realizaram em fevereiro de 2012, e que estabeleceram o seu nome como representante da maior parte dos opositores na Venezuela, especialmente aqueles à direita no espectro político. Nas últimas pesquisas divulgadas, seu nome aparece bem atrás do nome de Maduro, em intenções de voto. Hoje, o cenário político venezuelano está entre os mais abertos do mundo. Há especulação e tramas de golpes, vindos da direita e da esquerda. E mesmo a provável vitória do candidato chavista nas próximas eleições seria apenas o começo de um processo de re-articulação política que certamente trará muitas outras surpresas.

Entre tantas incertezas, resta a certeza de que a Venezuela não voltará a ser o que era antes da Era Chávez. Também o chavismo, se for vitorioso nas eleições que virão logo, não poderá ser o mesmo sem seu principal líder. Uma Venezuela nova está se formando, a partir dos erros e dos acertos do líder que se foi.

*Esse artigo é um desenvolvimento de “Balanço da Era Chávez (1999-2013)”, publicado em americalatinaemperspectiva.wordpress.com, no dia 06/03/2013.

Sobre o colaborador: Eliel Waldvogel Cardoso é Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de São Paulo (2008). Desenvolve pesquisa de Mestrado sobre as relações entre o Brasil e a Venezuela no Departamento de História da Universidade de São Paulo. Tem experiência como analista de relações com investidores e como Diretor-Executivo na Câmara de Comércio Brasil-Panamá. É também membro da Associação Nacional de História e da Associação Brasileira de Relações Internacionais.