Discussões sobre o papel do escritor na sociedade ou sua potencial participação popular são infindas e vêm de muito tempo. Tiveram seus momentos de ápice, como nas décadas de 1960 e 1970, cada vez mais distantes de nós, mas ainda tão presentes. Essas opiniões, muito variadas entre si, levaram os críticos e os próprios escritores a ditarem muitas vezes o que seria a literatura e quais livros deveriam ser considerados “realistas” ou “populares”. Meu objetivo não é dar essa definição, por favor. O realismo cada vez mais me parece ser um conceito mais abrangente do que imaginamos. A realidade é sempre um princípio norteador da criação literária.

Em meio a essas discussões no âmbito brasileiro, alguns autores acabaram sendo deixados de lado, não estabelecidos no cânone, dentre eles o mineiro Murilo Rubião (1916-1991). Sua obra completa, não muito extensa e composta unicamente de contos, não seria a opção imediata para ser qualificada de “realista” pela maioria das pessoas de acordo com o senso comum, acredito eu. Não se trata de um Graciliano Ramos, nenhum de seus contos nos descreve claramente pobres sertanejos que buscam a sobrevivência. O autor de Vidas secas certamente tinha como meta a representação da realidade de personagens antes não muito explorados pelo romance burguês do século XIX, fato esse que duvido que alguém não confirme. Agora, por que não vemos tão claramente o mesmo desejo em Murilo Rubião?

Em sua Obra completa, editada pela Companhia das Letras, temos a chance de fazer uma leitura panorâmica dos 33 contos que constituem sua produção de modo que percebemos facilmente sua característica que mais chama a atenção do leitor: o absurdo. Seus personagens sempre se encontram desde o começo de cada texto envolvidos numa situação fantástica que quase sempre parece verossímil para o leitor e para a própria personagem. Não se espera que um coelho fale, mas no conto “Teleco, um coelhinho” o animal fala, se muda para a casa do protagonista e ainda se metamorfoseia a todo tempo em outros animais, inclusive em homem a fim de se relacionar com uma mulher. Em “Elisa”, temos dessa vez uma mulher misteriosa que aparece e invade uma casa e a vida de um homem transformando-a por completo sem razão. O que de início parece inverossímil, logo é aceito pelo leitor em seu pacto com o autor, porém ele não para de ser confrontado com outros elementos fantásticos. Parece ser uma literatura que não se cansa de se afirmar como absurda, mas, ao mesmo tempo, não para de ser alegórica. Teleco pode ser um coelho, mas, em sua trajetória, às vezes parece mais humano do que o próprio protagonista.

Alusões a Franz Kafka já foram feitas em relação a Rubião, como poderia se imaginar. Difícil não se lembrar de O processo ao lermos “A fila”, conto em que a protagonista se vê todo dia numa mesma fila com uma senha de numeração altíssima sem conseguir resolver um problema que nem é seu. “A armadilha” também carrega o peso negativo das narrativas kafkianas, tendo dois personagens presos entre si por algum compromisso social e, ao final, presos em um prédio pela eternidade. “O lodo” também leva o protagonista a fugir de uma imposição de uma figura de autoridade até precisar dela à beira da morte advinda dessa força social. Também em “O ex-mágico da Taberna Minhota” temos um jovem que subitamente se vê realizando mágicas sem saber como, até o momento em que se torna funcionário público e perde todo e qualquer poder, parecendo louco por ainda relutar em recuperar seus truques.

Exemplos são infindos, como pode se notar. Impossível não se lembrar de Kafka por essa visão do indivíduo subjugado a uma autoridade ou poder maior que o destitui de sua liberdade dentro de uma narrativa fantástica, mas também é necessário reforçar que nem todos os contos têm exatamente essa forma. Na verdade, Rubião parece ter ido além em alguns de seus contos, como “O bloqueio” e “A diáspora”. Segundo nota da edição da Companhia das Letras, Rubião afirmava ter lido Kafka tardiamente, depois de já ter escrito vários de seus contos, e que seu principal referencial era (acreditem se quiser) Machado de Assis. Isso pode parecer absurdo (isso também), mas não é: “O pirotécnico Zacarias”, em que a personagem morreu e nos conta sua história enquanto ainda vaga por sua cidade, nos remete imediatamente a Memórias póstumas de Brás Cubas, pelo menos no caso de leitores machadianos.

Como pode se perceber, o absurdo da literatura de Rubião se aproxima cada vez mais do que consideramos como “realista”, ainda que de uma maneira inesperada. Nesse sentido, também intriga o leitor a presença constante de trechos da Bíblia como epígrafe de seus contos, fato esse também citado em nota de abertura da edição. A todo tempo, a conclusão de cada texto parece subverter o sentido da epígrafe em seu contexto original e aproximá-lo para esse novo contexto. Rubião parece querer que aceitemos essa realidade absurda como se fosse estabelecida pela tradição. O protagonista de “O ex-mágico da Taberna Minhota”, que se afirma desmoralizado ao final da narrativa, é também caracterizado como “pobre” e “desvalido” se voltarmos à citação bíblica inicial. Suas epígrafes não servem para antever os acontecimentos, já que eles nunca são previsíveis, mas sempre estão ali para o leitor ao final voltar a elas e ter a sensação de que a condição humana em si é absurda.

Por vezes, o realismo me parece uma definição inútil. Sabemos que ele é a designação de uma escola literária francesa do final do século XIX, que ele também é nome de um sem número de momentos da história literária de cada país, porém ele persiste também como conceito. Podemos dizer que qualquer obra, dentro de uma escola realista ou não, atende a esse conceito, mas por que sentimos tanto essa necessidade de usá-lo? Por que alguns livros nos parecem mais realistas que outros? Difícil responder a isso e acredito que uma ligeira análise de Murilo Rubião, como esta, se mantém longe da resposta. Apesar disso, acredito que sua obra parece estar aí para confrontar nossas opiniões, não podendo ser ignorada.