Houve um período da minha vida em que me ative ferrenhamente à leitura dos clássicos nacionais. A intensidade das leituras buscava seguir o passo das aulas de literatura do colégio: se o tema da aula era romances indianistas, eu desandava a ler José de Alencar; se fosse o realismo, partia para Machado de Assis; naturalismo, Aluísio Azevedo; e assim por diante. Guardo uma lembrança muito boa desse tempo – que considero essencial para minha formação como leitor –, sendo em parte por isso, creio eu, que a leitura de O Ateneu, de Raul Pompéia, me agradou tanto.

É óbvio que não é o meu gosto subjetivo que define um livro como “bom” ou “ruim”, isso é a consequência da junção, no meu caso, da nostalgia com a boa literatura de Pompéia. O Ateneu não é um clássico à toa, não galgou sua posição no cânone nacional por falta de mérito, de modo que essa resenha procura dissecar e analisar os elementos que lhe garantiram um lugar entre as grandes obras brasileiras, e a Pompéia um lugar ombreando nomes de vulto da literatura nacional.

O livro em questão tem muito de autobiográfico: Pompéia estudou como aluno interno do Colégio Abílio, onde manteve intenso contato com as experiências e o mundo do internato, precisamente a realidade na qual vive o protagonista do romance, Sérgio,  menino de onze anos que ao início do livro é deixado à porta do Ateneu pelo pai, que à ocasião, proclamou: “Vais encontrar o mundo. Coragem para a luta.”

As palavras do pai de Sérgio possuíam de fato um tom profético. Talvez não especificamente como ele esperava, mas ainda assim verídicas sob vários aspectos. A partir do momento em que adentra o universo do Ateneu, Sérgio está a cruzar, também, o limiar da infância, dando passos em direção ao mundo adulto. Mas como toda transição, essa passagem – esse batismo de fogo, se preferirem – não será fácil nem passará o protagonista incólume por ela.

O romance de Raul Pompéia acompanha, portanto, o pequeno Sérgio em seu cotidiano no Ateneu. A premissa é simples, mas a execução e a apreensão do escritor com relação aos nuances da vida do internato não o são: elas estão vocabular e epistemologicamente munidas dos recursos para dar conta de pôr o leitor em contato com a complexidade daquele ambiente e de seus habitantes.

Ao longo da jornada de Sérgio, uma porção de personagens vai aparecendo. O primeiro deles é o emblemático Aristarco, o diretor do colégio, que alterna sua rigidez gerencial com seus ensinamentos morais e suas patéticas palestras, ricamente fornidas de pompa e circunstância. Há também o Professor Bataillard, caricatura do mestre decorosamente seguidor dos códigos morais e dos princípios conservadores em que, reza a cartilha, devem se manter os corpos e os espíritos dos jovens internos. Há ainda uma galeria ampla e diversa de alunos, desde os mais ingênuos – tais como o próprio Sérgio e o franzino Franco –, até os mais cozidos nas intempéries da vida – como Barbalho e Sanches –, e outras personalidades, como Rebelo, um observador que sabe manter-se fora e a salvo das encrencas do colégio interno; Nearco, um dos mais dedicados e laureados alunos; e Bento Alves, que foi durante algum tempo grande companheiro de Sérgio.

Por tratar-se o Ateneu de um colégio interno que atendia aos filhos das famílias abastadas do Brasil Imperial, questões de ética, princípios, castigos, disciplina e status eram de ser observadas à risca, pois eram parte de seus emblemas sociais. A ciosa preocupação do diretor e dos responsáveis é satirizada com astúcia pela narrativa de Pompéia: não faltam ocasiões que ensejem o retrato do caráter patético de determinados expedientes e rituais simbólicos levados a cabo pela escola. A homenagem a Aristarco por meio da instalação de um busto seu, de bronze, é um ótimo exemplo disso: Pompéia conduz a narrativa de modo a sublinhar a hipocrisia presente nesse evento. A solenidade exacerbada dos atos e discursos da diretoria criam uma atmosfera melodramática e piegas em torno das figuras dos educadores e do próprio colégio.

O microcosmo do Ateneu está repleto de cruezas práticas que se distinguem radicalmente da imagem propalada pelos discursos da diretoria. Através de orientações de amigos e de duros aprendizados, Sérgio vai deslindando ao leitor o véu que recobre a vida cotidiana do internato, não raro cruel e sórdida. Os encrenqueiros, as brigas, a convivência turbulenta, as cobranças acadêmicas e comportamentais e as armadilhas dos colegas são uma das faces do Ateneu. Esse aprendizado truculento constitui-se numa das mais importantes lições que Sérgio recebe quando no internato.

A vida no Ateneu, no entanto, não se constitui somente de nervos tesos e dentes a ranger-se, aquele ambiente e aquela situação também criam as circunstâncias para que um companheirismo, ora mais velado, ora mais evidente, venha à tona. É o que acontece com Sérgio, por exemplo, quando de sua amizade com Bento Alves e Egbert. Além disso, nas ocasiões em que a pressão dos professores se intensifica, uma calorosa cumplicidade se insinua por entre os alunos, unindo-os pelos laços da condição e do opositor comuns.

Diante das circunstâncias históricas de seu tempo, e devido, também, à militância de Pompéia pela causa republicana, existem leituras que interpretam O Ateneu como sendo uma fina crítica ao status quo imperial brasileiro em algumas de suas expressões.
Nessa leitura, o internato seria uma parte de um cosmos maior, o Brasil Império, transpondo, por conseguinte, alguns elementos da realidade política nacional para o dia a dia do colégio. Em que pese a ameaça constante de essa leitura descambar a extremismos mecanicistas – tentando, forçadamente, encontrar correspondentes imperiais em cada canto do Ateneu –, ela goza de uma solidez muito interessante, como quando posta diante de um trecho como o seguinte:

E não se diga [que o Ateneu] é um viveiro de maus gérmens, seminário nefasto de maus princípios, que hão de arborescer depois. Não é o internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora. Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso, como os que se perdem, a marca da condenação. (p. 239)

É possível notar que o Ateneu serve como uma espécie de “termômetro” da vida nacional, seja em sua face governamental, seja no tipo de cultura que nele viceja. Ao (re)criar literariamente o Ateneu, Pompéia nos indica que ele não ignorou a realidade nacional ao criar seus personagens, cenários e situações. Assim como o Ateneu não pode desvencilhar-se da sociedade a que, em primeira e última instância, responde, também Pompéia não pôde – nem quis – desvencilhar-se da situação histórica de seu país.

Essa constatação enche de sentido a trama e as falas e os personagens do Ateneu, fazendo com que da sátira presente na história surjam questões mais amplas, que nos informam sobre a maneira como o escritor concebia seu ofício e o seu papel perante seus leitores. Numa cena literária em que os eflúvios românticos ainda sopram sobre as penas e em que o cientificismo naturalista insiste, muitas vezes, em condenar o homem à tirania supostamente inescapável do meio, Pompéia ergue-se como uma voz questionadora. Sem deixar-se enquadrar por escolas e “cartilhas”, o escritor cultiva uma imagem de homem deveras interessante, e até mesmo ousada para a época: um homem que não ignora as condições reais e objetivas a lhe pesarem sobre os ombros, mas que não se deixa, necessariamente, sucumbir a elas. O trecho seguinte evidencia isso:

[O Ateneu] É uma organização imperfeita, aprendizagem de corrupção, ocasião de contato com indivíduos de toda origem? O mestre é a tirania, a injustiça, o terror? o merecimento não tem cotação, cobrejam as linhas sinuosas da indignidade, aprova-se a espionagem, a adulação, a humilhação, campeia a intriga, a maledicência, a calúnia, oprimem os prediletos do favoritismo, oprimem os maiores, os mais fortes, abundam as seduções perversas, triunfam as audácias dos nulos? a reclusão exacerba as tendências ingênitas? Tanto melhor: é a escola da sociedade. Ilustrar o espírito é pouco; temperar o caráter é tudo. [grifo meu] (pp. 237-238)

Apesar de tudo o que há de reprovável grassando o dia a dia do Ateneu, ainda assim o internato sobressai-se como uma experiência transcendental e importante para os alunos. Essa constatação é emblemática para compreender o retrato de homem construído por Raul Pompéia, pois diante de tanta perfídia, somente um escritor não adepto do determinismo em voga na época poderia encarar como minimamente salutar a permanência no Ateneu. O grifo que fiz procura ressaltar precisamente isso: “temperar [e não determinar] o caráter é tudo.”

Através de uma prosa precisa, de adjetivação abundante mas muito bem manuseada, que Pompéia disseca o Ateneu e seu internato. Sem grandes reviravoltas em seu enredo, mas com uma lucidez crítica louvável é que ele nos apresenta um ambiente que já foi tema de diversos retratos literários – como O jovem Törless, de Musil, e Demian, de Hesse, por exemplo –, mas que ganhou seus próprios contornos e seus próprios dilemas inserido nas tramas da realidade nacional do século XIX.