A leitura das obras de Thomas Mann, como Morte em Veneza (1913) e outras do início de seu percurso como escritor, pode ser realizada tranquilamente, sem grandes preocupações, porém quando nos preocupamos com a forma dessas obras, podemos ficar intrigados. No início do século XX, ainda há publicações como Morte em Veneza, em que um personagem como Gustav von Aschenbach parece estar em um enredo decadentista. Seria, então, Thomas Mann um escritor decadentista?

Essa questão já foi levantada por alguns estudiosos de sua obra, e ela não foi feita à toa, pois, como disse, a leitura um pouco mais atenta desse romance nos incita para a dúvida, para um desejo de entendê-la. Geralmente, a historiografia literária tende a compreender a obra de um autor relacionando-a com o contexto social e artístico da época de sua publicação, já que se imagina que o escritor é influenciado pelo mundo em que vive. Por isso, surge a dúvida sobre esse decadentismo fora de época, incompreensível dentro de uma análise historiográfica mais comum.

Essa questão, como foi dito, já foi levantada por alguns pesquisadores, mas antes de analisarmos todos os pontos apontados por eles, devemos retornar para o decadentismo em si, ou seja, para a sua origem francesa, no período chamado de fin-de-siècle, referente à transição do século XIX para o século XX. Segundo Moretto, não se deve pensar em uma escola decadentista, mas sim em um movimento decadentista, que coexistiu com outras tendências literárias francesas, como o simbolismo, o naturalismo e o parnasianismo, e ainda se prolongou como “clima”, influenciando inclusive Thomas Mann.1

A construção desse clima de revolta contra as tendências sociais e artísticas desse período caracterizado pelo positivismo estimulou escritores como Rimbaud, Mallarmé, Lautréamont e Verlaine a formular uma poética que, de certa maneira, renovou ideais poéticos românticos. O grotesco e o sublime voltam a se destacar na literatura, e a reformulação da forma da poesia volta a ser tema para discussão nos clubes poéticos da época. Para fugir de todo cientificismo da época e de uma retomada dos ideais classicistas, os decadentistas não encontram outra solução nessa decadência além de se refugiar na arte. Não é exatamente uma atitude que visa um desenvolvimento da cultura e da sociedade, mas sim a elevação da arte em si mesma e do artista, ligando assim vida e arte como unidade.

Esse “clima” decadentista que inspira o espírito do artista para a postulação da Arte e do Belo como ideais está relacionado ao conceito de l’art pour l’art. Para se construir l’art pour l’art, o artista decadente somente vê a opção de unir a arte à vida, o espírito à vida, tornando-se um outsider e isolando-se de tudo o que não é arte, especialmente do que é ciência, justamente o que os naturalistas almejavam ter em sua literatura. Essa fuga do artista, que gera um consequente isolamento da sua parte, não é vista exatamente como uma solução positiva pela sociedade, que a reprova por considerar o marginal como egoísta, alguém que saiu da unidade e buscou em si o entendimento humano, de acordo com o pensamento de Schopenhauer.2

Considerando assim a elaboração da estética decadentista francesa, podemos analisar melhor a obra de Thomas Mann, mas não somente Morte em Veneza. A construção de personagens como Thomas Buddenbrook, d’Os Buddenbrooks, ou ainda do já referido Aschenbach se baseiam em visões estéticas decadentes, ainda que a questão moral prevaleça, como o próprio Mann afirmou.3 Apesar disso, não pode se deixar de lado o fato de que ele era grande conhecedor da cultura do século XIX, especialmente das referências dos decadentistas na filosofia, na música e nas artes plásticas. Criado nesse período de decadência com máscaras da Belle Époque que surgia, o autor d’A Montanha Mágica se desenvolve como uma figura quase que contraditória por estar em um meio burguês, porém com tendências artísticas.

Nesse contexto, a ideia do artista decadentista que quer se afastar desse meio e se tornar marginal (outsider) condiz bem com a biografia de Mann e também com a constituição de seus primeiros personagens, característicos dessa dubiedade da decadência.4 A escapatória da sociedade vista pelo artista marginal é a sua própria criação, o imaginário que ele cria e que busca construir segundo os seus ideais de beleza, não importando mais o que é belo para o coletivo, mas sim somente para ele mesmo. Aqui também se pode dizer que o indivíduo artista começa a se compor baseado nos seus ideais artísticos, e isso só pode ocorrer de acordo com a ligação vista entre arte e vida pelos decadentistas. Esse indivíduo que surge do coletivo decadente para ir ao encontro de sua arte pode ser Thomas Buddenbrook, Gustav von Aschenbach ou até mesmo o próprio Thomas Mann.

Apesar dessas características decadentistas na obra do escritor alemão, ele não pode ser considerado parte do movimento finissecular.5 Sua obra é considerada por muitos realista crítica, porém não se pode negar as influências da estética literária anterior, inclusive pelo fato de que as leituras de Mann eram especialmente autores literários e filosóficos do século anterior. O jovem escritor foi muito influenciado pela dubiedade do fin-de-siècle, porém não necessariamente decidiu seguir com ela no seu tempo, ainda que tivesse consciência de que os dilemas do artista decadente são constantes no pensamento estético. Portanto, seus personagens refletem essa discussão ligada à biografia do seu autor, representante de uma geração transitória, que busca se situar num contexto instável do período anterior à Primeira Guerra Mundial, responsável pelo fim da Belle Époque.

Escritor consagrado, Gustav von Aschenbach parece ser no início do enredo de Morte em Veneza uma figura firme, determinada, segura e talvez classicista, ou seja, diferente do que se considera como um artista do fin-de-siècle, ou um artista moderno pela ótica de Baudelaire. Beleza pura é uma preocupação sua, e tinha a certeza que estava perto dela, porém sentia falta de espírito em sua obra, como é descrito no romance:

Não que produzisse coisas ruins; ao menos isso era privilégio de seus anos: sentir-se a cada momento tranquilamente seguro de sua maestria. Esta, porém, embora louvada por toda a nação, não o contentava; parecia-lhe que faltavam à sua obra aquelas características de uma disposição espiritual ardentemente empenhada, que, sendo fruto de prazer, configuravam, melhor do que o faria qualquer conteúdo imanente, um mérito importante: o prazer dos leitores.6

Apesar dessa caracterização, ao longo do enredo se percebe uma personalidade contraditória, que se rende ao impulso, viaja para um lugar e logo muda de ideia e vai para outro lugar, chegando enfim a Veneza, cidade considerada como um reduto de beleza pelo escritor. Porém, essa cidade se dirige à decadência, fazendo com que essa figura dúbia se renda à sensibilidade por uma beleza supostamente perfeita que tanto procurava nesse meio, no caso a beleza de Tadzio.

Aschenbach assim se mostra como um representante espiritual da Belle Époque, que tenta se manter numa posição burguesa estável, mas tem tendência à marginalidade, à posição do outsider.7 Portanto, o artista marginal e agora decadente entra em crise, não conseguindo mais adequar a sua arte pura, talvez racional, à nova situação em que se encontra. Aqui o valor decadentista da Beleza começa a se desenvolver especialmente na posição de Aschenbach como artista, pois não consegue mais separar a arte da vida.8 Enfim, o escritor encontra o que faltava em sua obra, aquela “disposição espiritual ardentemente empenhada” que os decadentistas procuravam ter em sua poética, já que espírito e vida estavam associados.

Então, Aschenbach agora se situa num contexto decadente, numa cidade que se deteriora, num período de dissolução, onde se tenta manter a aura burguesa das famílias hospedadas no hotel, burguesia da qual agora o escritor se afastou, mesmo sabendo dos riscos que corre ao continuar ali. A doença não o assusta, apenas o sublime Tadzio parece importar, aquele ícone da Beleza, aquele elemento de perfeição, aquele objeto que o artista apenas aprecia. Por ser considerado perfeito, digno do mundo das ideias de Platão, Aschenbach não consegue mais vê-lo como um garoto, um ser humano, alguém com defeitos, mas simplesmente como o Belo ali a ser presenciado, admirado.

Tadzio não pode ser alcançado, estando ele no hotel, naquele ambiente burguês, ou na praia, espaço transitório entre a sociedade e o mar, representante de um desejo de fuga dos formalismos, o que também se percebe na adaptação cinematográfica de Luchino Visconti.9 Nesse aspecto, podemos entender como o imaginário decadentista e também romântico do Belo instiga o artista a se isolar, a buscar a vida na arte, ainda que a arte possa somente ver a si mesma, l’art pour l’art. Tadzio é o objeto da arte, é a Beleza que o escritor procura por ser ideal, porém não alcança.

Se compararmos a posição de Aschenbach como artista no início do romance e no final, já levado pela perseguição constante do seu objeto ideal de beleza, Tadzio, podemos analisar o trajeto drástico feito pelo personagem. A falta de espírito anterior agora contrasta com a decadência e a dissolução do artista respeitado pela sociedade, firme na sua máscara burguesa, o que pode ser observado neste trecho do romance:

Lá estava ele sentado, o mestre, o artista dignificado, o autor de Um miserável, que em tão exemplar pureza de forma recusara a boêmia e as profundezas turvas, negara qualquer simpatia pelo abismo e reprovara o réprobo; ele que subira tão alto, que, senhor de seu conhecimento e liberto de toda ironia, se habituara às obrigações impostas pela confiança das massas (…).10

A Trindade Decadentista, ou seja, Arte/Beleza/Morte,11 começa a tomar corpo a partir do ponto em que o protagonista de Morte em Veneza se aproxima do seu fim: a morte. Aqui podemos dizer que é o seu fim por tratar-se do destino final do decadente, que não encontra outra saída para sua situação de outsider, e por ser realmente o seu caminho no enredo do romance, como previsto pelo título. Pode-se assim pensar que a Trindade referida realmente é decisiva, pois ela se estrutura somente com a morte, máximo distanciamento do marginal em relação à sociedade.

A doença consome Aschenbach em seu processo de isolamento para contemplação de Tadzio até o ponto em que a situação não se sustenta mais, pois não há como o artista chegar à Beleza, pois ela é idealizada. Aschenbach finalmente encontra o espírito de sua obra, ausente na sua literatura, como descrito anteriormente, porém agora presente na vida, que também deseja ser arte.

  1. MORETTO, F. M. L. Caminhos do decadentismo francês. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo, 1989, p. 32-33.
  2. ROSENFELD, A. Thomas Mann. São Paulo: Perspectiva: Editora da Universidade de São Paulo; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994, p. 39.
  3. Idem, p. 41.
  4. PENHA, V. M. Thomas Mann e o Decadentismo, p. 3.
  5. Idem, p. 2.
  6. MANN, T. Morte em Veneza. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p. 10.
  7. ROSENFELD, A. op. cit., p. 180.
  8. PENHA, V. M. op. cit., p. 5.
  9. ROSENFELD. A. op. cit., p. 180.
  10. MANN, T. op. cit, p. 90.
  11. PENHA. V. M. op. cit., p. 1