Como eu já havia escrito anteriormente – na resenha de História do cerco de Lisboa –, subversão por subversão, ou ser subversivo simplesmente por ser subversivo, não faz uma grande obra. É preciso ser mais que subversivo. É preciso encarar a subversão tanto como uma forma de expor um posicionamento radicalmente contrário em relação a algo – de forma chocante, se possível –, quanto, e talvez mais importante ainda, como um meio de construir um argumento. Saramago, como escrito na supracitada resenha, faz isso de maneira consciente e bem pensada, e Ballard, de forma bem diferente do escritor português, também o faz. Está aí Crash! que não me deixa mentir.

A subversão em Crash! é resultado de um exercício interpretativo do mundo. Não se pode acusar James Ballard de ter feito de sua escritura uma ficção escapista ou que se quer alheia da situação existencial da humanidade, ela é, apesar de seus contornos bizarros, um livro deveras expressivo. A constatação de que o “(…) casamento entre a razão e o pesadelo, que tem dominado o século XX, deu origem a um mundo que é cada vez mais ambíguo” (p. 5), embora não seja uma peculiaridade do pensamento de Ballard, é uma das ideias mais poderosas do livro em questão. Trata-se, como ele mesmo falou, de uma “metáfora extrema para uma situação extrema”.

Quem narra a história é um personagem de nome James Ballard. Ele se envolveu em um acidente de carro e ficou conhecendo, por conta dos incidentes ligados a esse acidente, tanto Robert Vaughan, uma espécie de estudioso da televisão, quanto um mundo de delírios eróticos e sexuais ligados aos carros e as colisões entre eles. Ballard é casado com Catherine e se envolve com Helen Remington, uma mulher que enviuvou-se por conta do acidente no qual Ballard esteve envolvido.

A trama e os personagens são, realmente, inusitados e nada convencionais. A apresentação do plot choca o leitor logo de início, e, se o desenvolvimento da trama não faz mais que dissertar ficcionalmente sobre essa ideia inicial, é porque Ballard quer tornar crível – dentro das propriedades da verossimilhança – um choque inicial tão tenso.
O narrador-protagonista, embora carregando o peso físico do acidente, não se abstém de permanecer próximo dos carros, inclusive do seu próprio. A colisão foi um divisor de águas em sua vida, pois foi a partir dela que ele se deu conta de que seus prazeres sexuais só seriam satisfeitos sobre rodas. A influência de Robert Vaughan é providencial para aprofundar essa constatação e tornar cada vez mais intensa a exploração desse insólito território por Ballard.

Em pouco tempo, Ballard envolve sua esposa e a viúva Remington nesse círculo de prazeres incomuns. A presença de Vaughan completa o grupo e os leva a conhecer de perto o mundo no qual ele vivia, um mundo em que se fica atento à frequência de rádio dos carros de polícia para saber em quais ruas há acidentes automobilísticos que possam satisfazer o apetite e a volúpia desbragados de Vaughan por colisões e pelas vítimas escoriadas e mutiladas delas.

Crash! apresenta um mundo sombrio de taras doentias, luxúria motorizada e sujeitos desviados. Vaughan vaga pelas ruas buscando corpos que inspirem posições sexuais. Ballard-personagem encontra somente nas estradas e ruas – constantemente atulhadas de carros – a realização carnal de seus desejos, arrastando sua esposa e a viúva Remington para suas tresloucadas relações, ao passo que essas se tornam adeptas desse mundo. Os carros são o palco do sexo, os corpos dos vivos são a reprodução erótica dos cadáveres dos acidentes e o sexo parece ser o combustível primordial a alimentar os personagens.

Eis apresentada a subversão. Parasse a subversão nesse ponto e ela não seria nada mais que subversão. Mas Ballard é consciente demais acerca de sua literatura para deixá-la tornar-se uma expressão isolada de um nicho, um novo gênero, como ele mesmo diz quando escreve que Crash! inaugura o porno-tech. A subversão de Crash! serve para pôr em evidência algo maior do que os dramas individuais de um grupo de sujeitos cujos apetites sexuais estão ligados a acidentes automobilísticos. Crash! usa da história desses personagens para expor os dilemas e cotejar as questões que envolvem o mundo criado pela inserção dos carros e, em espectro mais amplo, pelo assomo da modernidade na vida cotidiana e nos âmbitos mais privados da vida dos sujeitos, tais como os assuntos de alcova.

A metáfora que é a história desse grupos de personagens procura enfeixar uma porção de problemas que se insinuam pelas fissuras da obra. Na introdução à edição francesa de Crash!, publicada em 1974 e presente na edição da editora Marco Zero, Ballard mostra como ao se utilizar dos recursos da pornografia e da ficção científica, buscava desnudar problemas bem mais amplos e complexos, que diziam respeito não às taras humanas, especificamente, mas relacionados à civilização criada pelo desenvolvimento tecnológico e industrial, alguns de seus valores e que tipo de homem foi – ou pode ser – criado por ela. Como o próprio autor escreveu sobre a modernidade,

O principal fato do século XX é o conceito de possibilidade ilimitada. Este predicado da ciência e da tecnologia enfatiza a noção de uma moratória sobre o passado – a irrelevância e mesmo a morte do passado – e as ilimitadas alternativas disponíveis para o presente. (p. 6)

arrematando, logo em seguida, que “Dado esse imenso continente de possibilidades, poucas literatura parecem estar melhor equipadas para lidar com seus temas do que a ficção científica” (p. 6)

Sabemos estar diante de um autor que pesou cada uma de suas colocações, e que se ele criou personagens tais como Vaughan e situações tais como os bizarros acontecimentos de Crash!, não foi por acaso ou somente por satisfazer um prazer secreto que possuía. Sabemos estar diante de um argumento à realidade, uma tentativa de expressar sentimentos e pontos de vista com relação a experiências concretas. Se não podemos estender indiscriminadamente essa consciência a todos os escritores, certamente não podemos afirmar que Ballard não tenha refletido para construí-la.

Se a história dos homens caminhou, conscientemente ou não (lembrem-se das palavras de Ballard quanto ao “casamento da razão e do pesadelo”), de modo a permitir o surgimento de circunstâncias que levaram um sujeito a conceber a “metáfora extrema” de Crash! como uma forma expressiva o suficiente para contemplar a “situação extrema” do mundo moderno, isso certamente nos diz muito a respeito da realidade. Não se trata de sensacionalismos, Ballard não é um profeta nem um maníaco sexual. Não é o que ele escreveu, simplesmente, mas o fato de ele ter escrito, e o fato de tê-lo feito nas circunstâncias que o fez. As quais, aliás, não são tão distantes de nós.

Espero que a maneira altissonante com que procurei expor meus argumentos não os torne extremos demais, a ponto de torná-los inelegíveis para reflexão. Pois, se há algo que Ballard e Crash! definitivamente nos querem fazer, é refletir. Não catequeticamente, não ortodoxamente, não doutrinária ou ideologicamente, mas com a pungência da boa literatura, aquela que não se deixa apagar da memória tão facilmente, ou aquela que nos perturba o suficiente – e Crash! faz isso – para chacoalhar-nos e tirar-nos da mesmice ou da preguiça epistemológica acerca do mundo.