por Tiago Guilherme Pinheiro

Sem dúvida, falar sobre romances “contemporâneos” (ou quaisquer romances) lançando mão de uma tipologia de gêneros parece apenas se validar quando, em meio à oscilação entre a generalização absoluta e a normatividade estéril, encontramos um caminho de leitura que, ao se deparar com um suposto rótulo apropriado para certo livro, esse imediatamente se perde, torna-se irreconhecível. Sendo assim, o gênero não passa de um catalisador na nossa tentativa de formalizar nossa reação (ou nossa falta de reação) com um romance. São essas reflexões que parecem saltar quando pensamos nesse livro peculiar que é A Infância de Jesus, do escritor J. M. Coetzee. 

Em suas primeiras páginas, acompanhamos a chegada de um homem e um menino, refugiados de um outro lugar, de “uma outra vida”, que permanecem para sempre indefinidos, junto com todos aqueles que se instalam nessa cidade chamada Novilla. Registram-se num Centro de Reubicación (a língua deste lugar é o espanhol, que não é o idioma materno dos dois recém-chegados) e passam a se chamar Simón e David, respectivamente. Ganham um apartamento e um trabalho, não sem alguns percalços. Logo são apresentados a um modo de vida ordenado, funcional, e, podemos dizer em um primeiro momento, justo. Não sem que algo nos pareça profundamente errado – não só a nós, mas também ao protagonista.

Bizarramente, nesse momento inicial do livro, há uma leve sombra, muito tênue, que persegue a nossa leitura. Ficamos tentados a enxergar algo de Admirável Mundo Novo, do Nós de Zamyatin, ou de alguma outra narrativa tradicionalmente alocada sob as asas do termo “distopia”. Mas isso parece ser desmentido constantemente aqui: não há nada parecido com drogas para a manutenção da satisfação, nem uma transparência completa que se transforme na vigilância de todos por todos, ou ainda uma polícia que encarne o papel de cola social através da força. Não: aqui surge uma espécie de satisfação mediana, de abdicação de todo o desejo pela garantia da manutenção da necessidade. Come-se pão, toma-se água e nada mais; abdica-se da sexualidade, em prol de certa liberdade; aceita-se uma literalidade da língua como garantia de entendimento comum da linguagem; e principalmente admite-se o esquecimento total da vida passada como condição para essa outra vida.

Mais que uma utopia, uma distopia ou algo parecido, a nossa tentação parece se dirigir para o termo a-topia. Não só por falta de alguma perspectiva outra, mas também porque falta a consistência desse lugar próprio que é Nevilla. Em outros termos, como o próprio Simón ira constantemente apontar, há uma falta total do senso de ironia, por parte da população, para não dizer da própria vida desse lugar. A vida média – essa vida que tanto parece ter-se tornado o ideal do nosso modelo democrático – é uma vida que não conhece outro sentido que não aquele que está em sua frente, sobre um chão seguro. Tudo é tolerado, todo o gesto de violência é denegado (o que logo irá provar ser uma falácia) e tudo é respeitado.

Nossos protagonistas são impulsionados por uma busca, por um laço de fidelidade que consiste na promessa feita por Simón a David de encontrar a mãe do menino: não uma mãe qualquer, mas verdadeira, “natural”, sem que seja necessariamente aquela que deu luz a ele (algo que se revela impossível descobrir, porque todos já esqueceram suas antigas vidas). Essa estranha condição causa-nos perturbação e certamente remete a esse estranho título que o livro leva.

Seria estranho considerá-lo como uma versão da história bíblica, ou ainda alguma alegoria. Mais próxima talvez esteja a ideia de “figuras” que esse livro evoca, ironicamente, em relação às passagens do Novo Testamento (assim como esse o faz em relação ao Antigo, que o pré-figura).

“Figurar” refere-se à relação de uma imagem com outra, futura, que essa anuncia. Possui uma espécie de similitude estrutural, ainda que não esteja à altura dessa outra imagem que vira. Assim, o sacrifício do cordeiro por Abraão para salvar o seu filho figura, antecipa, anuncia a morte de Cristo na cruz para salvar a humanidade, mas não se equivale a ela em termos de dimensão divina, por assim dizer. (Lembremos que Davi também é considerado uma figura de Jesus, porque aquele também foi o “rei dos judeus”).

O livro de Coetzee joga com as figuras teológicas, mas diminuindo-as, ao invés de elevá-las. São figuras invertidas, por assim dizer, sem nenhum significado cósmico maior – não estão ordenadas por um destino superior. De certo modo, seu modelo é mais o Quixote (obra que terá um grande papel no livro de Coetzee, que será lido e amado – a sua própria maneira – por David) do que a Bíblia

Isso dá toques de um estranho humor no livro, sobretudo naquilo que poderíamos chamar de sua segunda parte, ou da segunda parte da trama, quando, depois de reconhecer (sem nunca tê-la visto antes) a mãe de David, que o adota, esse passa a ter problemas na escola, por simplesmente não corresponder a expectativas de seu professor. Sobretudo naquilo que tange aos números e à palavra escrita. Assim, temos pequenas piadas envolvendo peixes e a inabilidade de David de contar, como se houvesse um número definido de objetos diante dele (“muitos” passa a ser uma somatória indefinida aqui). À multiplicação dos peixes passa a ser conferida uma explicação menos divina, que acaba por causar confusão, sendo classificada como dislexia pelos professores e conselheiros da escola.

Então, sugere-se (aqui nada se “impõe” explicitamente – o que talvez seja a verdadeira dimensão opressora dessa comunidade) que o garoto seja transferido para uma “escola especial” chamada Punta Arenas (lembremos que esse é o nome da ilha onde Pinochet treinava muitas de suas tropas, num lugar não muito distante da Ilha Dawson, principal campo de concentração da ditadura chilena). Os pais adotivos se recusam, e todos eles passam a ser perseguidos, porque estão vedando o “direito” da criança de ter uma educação.

Verdade que o livro de Coetzee é uma descrição de como num mundo que tem tudo para ser satisfatório tornamo-nos incapazes de entender uma outra escrita (que escreve outra coisa) e de contar (que conta outras coisas, outros valores), e de como essa potencialidade advém de certa forma qualidade primeira do pensar, a qual taxativamente chamamos de infantil – isto é, etimologicamente, aqueles que não sabem falar, aqueles que precisam ser ensinados a falar. David não está limitado por uma língua privada, senão que se expande como uma outra língua, não reconhecida ainda, porque fala daquilo que (talvez) virá, daquilo que não tem figura nesse mundo mediano, e que certamente pode transformá-lo. Simón, depois de tanta resistência, é o primeiro a ver que há um “problema filosófico” de grandes proporções que envolve a “incapacidade” (ou melhor: a recusa em certos momentos) de David expressar as operações de numerar e escrever. Um problema de valor de cada uma das partes contadas, por exemplo: um homem não é igual a outro homem para que se possa dizer que são simplesmente dois homens. Nem todas as contas são iguais, nem justas, mesmo quando seguem todas as regras da matemática (sabemos nos dias que vivemos hoje em todo o Brasil, que um par de moedas soma muito mais que 20 centavos, por exemplo).

Nesse sentido, tal como o herói de Cervantes que o menino tanto adora, David põe o mundo à prova, esse mundo que se baliza por denominadores médios e somatórios simplórios. Coetzee nos lembra que o milagre não se realiza no mundo por intervenção divina, mas opera muitas vezes lá onde se decide contar “mal” e escrever “errado”.