Minha paixão por quadrinhos é relativamente recente. Sim, adorava gibis quando era criança, mas larguei mão disso quando passei a frequentar as bibliotecas das escolas em que estudei. Sim, também tentei pagar de nerd estilo Seth Cohen, sem muito sucesso – a única coisa que aproveitei dessa tentativa de me aproximar de um personagem de seriado foi a descoberta da Itiban Comics Shop, uma das lojas de quadrinhos mais conceituadas do país. Mas só comecei a pirar mesmo com quadrinhos quando surgiu o selo Quadrinhos na Cia (QnC), da prestigiada Companhia das Letras, como já tinha confessado para a coluna de um dos meus tradutores favoritos, Érico Assis.

2009 e 2010 foram anos tão bons para os quadrinhos nacionais, que o QnC investiu pesado em obras produzidas aqui. Toda a expectativa que se criou em torno do álbum Cachalote, roteirizado por Daniel Galera e Rafael Coutinho e desenhado por este, incentivou a editora a apostar mais nessas parcerias entre roteiristas e desenhistas. Enquanto o novo leitor de quadrinhos esperava ansioso por essas publicações, não perdia a chance de conferir quase tudo produzido por brasileiros que o QnC publicava: Memória de elefante, do Caeto (bem mais ou menos); Muchacha, do Laerte (bem bom); Ordinário, do Rafael Sica (“super ótimo” ou “muito excelente”, é só escolher); Quando meu pai se encontrou com o ET fazia um dia quente, de Lourenço Mutarelli (dá pro gasto); Avenida Paulista, de Luiz Gê (bem bom, mas mais pelos desenhos); Deus, essa gostosa, de Rafael Campos Rocha (bom); Monstros!, de Gustavo Duarte (ótimo!).

Após longa espera, eis que o finalzinho de 2012 trouxe consigo a segunda dessas parcerias tão aguardadas: A máquina de Goldberg, com roteiro de Vanessa Barbara e ilustrações de Fido Nesti. Se eu tinha grandes expectativas, posso justificá-las: 1. Cachalote, a primeira publicação do QnC de combos brasileiros (roteirista + desenhista), é uma hq que me marcou muito; 2. a demora, de mais de dois anos, só serviu para as expectativas aumentarem, estilo bola de neve; e 3. quem me conhece sabe que contratei assassinos profissionais para darem conta das outras pessoas que se autoproclamam “o fã nº 1” da Vanessa Barbara – minhas ordens são de fazer tudo parecer um acidente.

Como estava, para variar, sem grana, fui para a megalivraria praticar os ensinamentos da autora, justamente para ler sua primeira hq – na verdade, o Gui (rapaz que, em breve, começará suas incursões pelo Posfácio) queria ver ao vivo o Kobo antes de se decidir pela compra e eu fui ajudá-lo na tarefa. Enquanto o esperava, comecei a ler A máquina de Goldberg.

Sem saber nada da trama, as primeiras páginas me diziam que o álbum seria meio nerd demais para o meu gosto, algo cheio de curiosidades aleatórias estilo caixa-de-cereal ou Guia dos Curiosos, até que… mudei, do nada, minha opinião e comecei a piscar mais rapidamente a fim de que os cílios dessem conta de evaporar uma aguinha chata que se acumulava na região. “Como é que eu pude duvidar da Vanessa Barbara?”, pensei. (Em minha defesa: 1. eu estava com um sono brabo no dia, o que me deixa meio chato-além-da-conta; 2. minhas “primeiras impressões” perduraram por apenas TRÊS páginas.) Uma das vantagens das grandes amizades é o fácil reconhecimento de momentos especiais: o Gui chegou e me encontrou tão entretido com o livro que me deixou quietinho até eu acabar a leitura.

Em menos de uma hora, conheci mais uma bela história de amizade inusitada entre um garoto gordinho e um velho ranzinza – tipo um Up – Altas Aventuras com outros temas. E mais: também é uma bela história de como a vingança é um prato que se come frio (!) – Kill Bill fica no chinelo na questão tempo para se levar a cabo um plano maligno. Adorei.

*

Reli recentemente A máquina de Goldberg e a mágica continua a mesma. Aliás, mágica coisíssima nenhuma. Eu fico imaginando o trabalhão que deve dar escrever um roteiro com aquele texto que flui como chantilly de spray na boca; com um vocabulário capaz de demonstrar, por exemplo, raiva sem usar as palavras mais fáceis e apelativas (sério, os personagens falam coisas como “fulo” e “gordote” e… funciona!); com tantos trocadilhos engraçadinhos com marcas famosas (a viação Cometa virou “Corneta”, por exemplo); com tantos fatos curiosos, expostos de um jeito distante da mera acumulação pesquisada no Google e jogada aleatoriamente no livro – tudo é muito importante para a narrativa e se encaixa direitinho.

Já que estamos falando de fatos curiosos, pergunto: você sabe o que é uma máquina de Goldberg? Uma das primeiras que vi foi a da abertura do programa infantil Rá Tim Bum. Mas uma das mais legais de todos os tempos há de ser essa do vídeo abaixo.  

Pois bem, voltando ao assunto anterior: tampouco “é mágica coisíssima nenhuma” o trabalho primoroso de Fido Nesti. Além das ilustrações lindas, a obra foi composta em “LM Fido Nesti”, uma fonte digitalizada a partir de sua caligrafia, mais um trabalhinho de Lilian Mitsunaga (mestre no ofício, responsável pela composição de quadrinhos sensacionais, tais como Asterios Polyp e Habibi). O uso do papel pólen (aquele mais amarelado), em combinação com a paleta de cores escolhida por Nesti (um marrom quase preto e um verde acinzentado), é aproveitado em todo o seu potencial, a fim de dar maior dimensão e dramaticidade aos quadros. Se a capa (e o que se esconde do lado oposto dela) já são bem bacanas, creio que o desenhista ganhou mesmo meu voto de confiança na hora de apresentar os colegas de acampamento do nosso herói, o gordinho Getúlio: as páginas 10 e 11 me lembraram um pouco do estilo de Charles Burns, em seu clássico Black Hole, só que um Charles Burns… fofo – mesmo quando representa a maldade humana. E quando o cara se permite viajar em uma splash page, aguenta coração, que é hora de se aproximar do sublime.

Mas não se engane com a fofura dessa dupla. Eu acabei de alertar você, leitor, de como Fido Nesti pode ser fofo ao representar a maldade humana. Pois bem, não deixe de notar o sorrisinho malicioso da roteirista na orelha do livro. Tudo parece muito divertido, mas ela está botando o dedo em tudo quanto é ferida que encontra pela frente: o bullying, a perda da inocência, o aprendizado das consequências de nossos atos, a melhor maneira de aproveitar o rancor no coração de forma a transformá-lo na vingança perfeita, a maldade humana! (Sério, tenho que parar de repetir essa expressão: você já deve estar achando que há cenas de genocídio etc. e não é bem assim. Só não consigo deixar de salientar o quanto algumas crianças podem ser cruéis, realmente más, com outras crianças – e nessa idade costuma ser difícil sacar que This too shall pass, como proclama a música do OK Go.) Talvez eu seja um bobão (aliás, isso é bastante provável), mas quase molhei o exemplar que lia na megalivraria, assim que li a seguinte frase: “Nem uma barrinha de chocolate?”.

Então, só repito mais uma vez: não baixe tanto a guarda ao ver peixinhos, passarinhos e tartaruguinhas fofas. A coisa é divertida, mas é séria. 1

*

Pergunta final: há alguma dúvida de que o álbum encarou de peito erguido as minhas altas expectativas? Espero que seja traduzido para tudo quanto é língua, porque a história tem um potencial enorme – quem não curte uma boa história de acampamento de férias?

Mas, antes de ela conquistar o mundo, queria lançamento da hq em Curitiba. Eu sei, já vai fazer quase um ano desde que o livro chegou às livrarias, mas ainda tenho esperança de criar um momento San Diego Comic-Con e ir fantasiado de alface (a autora está preparando um romance intitulado Noites de alface) para o evento. Quero que venham todos: ela, o Fido Nesti, as tartarugas, gato, papagaio, namorado, mãe, a galera do vôlei, do rockabilly, do shim sham, o Mandaqui inteiro, enfim. Curitiba está precisando disso.

Para finalizar a resenha, acho que o melhor é postar a foto de um pedacinho da hq. Que talvez resuma as 114 páginas dela. Que talvez resuma toda a explicação sobre máquinas de Goldberg. Que talvez resuma a vida, o universo e tudo mais. WP_20130710_001

  1. Por falar em animaizinhos, você já leu a nova coluna da Dindi? Corre lá!