Eu adoro jazz desde criança. Na minha playlist de fita cassete sempre tinha um pouco de U2, A-HA, Trem da Alegria e “músicas de desenho animado” (ou seja, o jazz!). Isso é pura verdade, e não pose. Quem é da minha geração (20 e muitos anos) com certeza assistiu a Tom e Jerry, Manda-Chuva e, especialmente, Charlie Brown (a cena do Snoopy patinando no gelo no especial de Natal é inesquecível)  1. E o que estes desenhos tinham em comum? A trilha sonora: o jazz – do bebop ao free, do cool ao blues, do west coast a new orleans e outros tantos. Quem diz que não gosta de jazz – nem mesmo um pouquinho – criança não foi.

Poderia discorrer aqui sobre o ritmo sincopado do jazz, de como é um swing que te carrega sem você perceber, de como ele fala com sua alma antes de falar com sua cabeça. Poderia. Mas o jazz nasceu pra mim, de verdade, com a minha infância.

E foi por essa paixão por jazz que caiu em minhas mãos o livro Todo Aquele Jazz de Geoff Dyer. E de todos os livros de jazz que já li este foi o que mais me tocou. Apesar de ser um ensaio, o livro não tenta esmiuçar as origens do jazz, explicar as diferentes vertentes e o meio social que contextualizou o estilo. A proposta de Geoff Dyer é muito mais descompromissada, mas nem por isso menos fiel ao estilo musical.

Todo Aquele Jazz relata histórias de grandes compositores e musicistas do jazz: Lester Young – “The President” do jazz ou simplesmente Pres –, saxofonista-tenor excepcional que foi enviado ao exército e obrigado a se submeter ao trabalho forçado e à humilhação; Thelonious Monk e Charles Mingus (que dispensam apresentações), que lutaram com suas doenças degenerativas; Bud Powell, vítima de espancamento de policiais e suas diversas internações em hospitais psiquiátricos; Ben Webster, Chet Baker, Art Pepper e seus problemas com drogas e alcoolismo e o fundo do poço.

A viagem – literalmente – pela história do jazz através destes personagens é conduzida por Duke Ellington, que ao longo da narrativa do livro está tentando condensar toda a história do estilo em uma única composição, enquanto cruza o país em um carro com Harry Carney ao volante, ambos com destino a uma cidade qualquer para uma apresentação num clube de jazz. Em cada capítulo um compositor diferente e sua trágica história de vida.

Não sei bem qual foi o recorte escolhido por Geoff para este ensaio, o porquê da escalação deste time. Presumo que seja porque os músicos-personagens tenham histórias marcantes e fortemente imbricadas na história do jazz. Alguns com mais carga de drama que outros, mas todos igualmente entregues à música. Uma entrega de corpo e alma na qual a música sempre ganha, em detrimento de todo o resto.

O autor parte de fatos biográficos dos músicos e se deixa levar por sua imaginação para contar, de maneira muito poética, a vida de figurões tão importantes para a história do surgimento e ascensão do jazz. De pano de fundo, captamos o meio social em que viviam estes músicos e como isso influenciou seu estilo musical; e de como esse estilo musical desenhou a trajetória do jazz.

O contexto social fica explícito com o sofrimento de Bud Powell e Lester Young, por exemplo, no que se refere ao racismo muito presente naquelas décadas: a escravidão ainda era uma lembrança muito recente, estava em vigor a lei Jim Crow nos estados do Sul e a luta pelos direitos civis – dos negros – ainda não havia tomado força. Ser negro era ser pária social. Ser músico era sinônimo de vagabundagem. Nada fácil, hein? E suas músicas passam muito dessa tristeza e agonia, dessa desilusão e desistência da vida (no sentido de que foi a vida que os abandonou à mercê das tragédias).

Dyer foi um mestre, neste livro, na arte de deduzir e inferir acontecimentos e desdobramentos para descrever tão ricamente a alma dos músicos personagens deste livro. Ele domina a prosa de tal forma com suas descrições e sensações que sua leitura nos desperta, e somos capazes de nos sentir em um clube de jazz sem nem mesmo precisarmos fechar os olhos para imaginar.

A pergunta inevitável que fica no ar é se o jazz era a voz deles, uma catarse de todos os seus sofrimentos, ou ao contrário, se eles eram as vozes escolhidas pelo jazz. Como bem disse Dyer: ”devia haver algo de terrificante numa forma de música capaz de provocar tamanho estrago num homem”.

Ah, e não digo que seja indispensável, mas com certeza muito melhor, ler o livro com a trilha sonora de fundo! Ao final do livro há uma série de sugestões do autor com uma bibliografia bastante diversa, mas aconselho ir além destas sugestões e descobrir o mundo por si só.