“Compus uma tragédia cheia de Ares. (…) É assim que os poetas devem proceder. Observa como desde a origem os mais nobres poetas se tornaram úteis: Orfeu, por exemplo, ensinou-nos os mistérios e a afastarmo-nos das mortes, Museu as curas das doenças e os oráculos, e Hesíodo os trabalhos da terra, as estações dos frutos, a agricultura. E o divino Homero donde recebeu honra e glória senão de que ensinou coisas úteis como linhas de combate, virtude militar, armamentos de homens? (1020 e ss. Tradução de Américo C. Ramalho, edição 70)”.
Assim Aristófanes descreve as falas de Ésquilo em um duelo imaginário com Eurípides em sua peça As Rãs. Observamos que se trata de uma batalha que almeja identificar a supremacia, de um ou de outro, na poesia trágica. Desta forma, por que, nos argumentos de Ésquilo, é tão valorizada a característica didática da poesia?
Para entender seu motivo devemos voltar no tempo e, para isso, me utilizarei nas próximas linhas do texto “A revolução da escrita na Grécia antiga e suas consequências culturais”, de Eric A. Havelock.

Importante apontarmos para o momento iletrado da Grécia. Conforme diz Havelock, muitas das obras que se acreditavam serem criadas já com o advento da escrita parecem ter sido, na verdade, criadas por meio da oralidade, como poesia para ser cantada, sendo imortalizada com a escrita, anos depois. Obras essas como a própria Ilíada ou a Odisseia, de Homero.

Assim, devemos entender que, falando de uma poesia cantada inclui-se a musicalidades, o ato de recitar e, o mais importante de tudo no caso que tratamos, o público.  “Segundo este modo de ver, seu didatismo não foi obra de um temperamento pessoal, mas resposta a expectativas pertinentes ao papel de um poeta que tinha por tarefa, entre outras coisas, recomendar e preservar o ethos da sociedade oral”. Portanto, Havelock,  neste trecho, esclarece que uma das tarefas do poeta, tarefa essa esperada pelo público, era de preservar o ethos, criar um senso social ao público por meio de uma poesia que fosse, entre outras coisas, didática, exortadora das virtudes do povo.

Se pensarmos neste dialogismo poeta X público causado pela poesia cantada, percebemos a importância que existe na criação de uma temática que faça sentido e aproxime todos que a ouvem. Além da pura motivação técnica, devemos atentar também à motivação cívica. Se falarmos de uma sociedade iletrada, falamos de um povo que não tem, de modo documental, transcrições que ensinem formas de conduta a serem seguidas, e é aí que a poesia tem papel importante. Dificilmente se poderia ouvir um discurso que pretenda educar um povo e, apenas assim, fazer com que todos os cidadãos memorizassem e transmitissem essas lições aos próximos, mas por meio da poesia (com seus versos, música e teor de entretenimento) essa tarefa torna-se muito mais prazerosa e fácil de ser cumprida. Esse argumento pode ser embasado no que diz Havelock: “[…] a poesia grega está imune a essa espécie de idealização privada, Ela é, em sua forma e em sua substância, “orientada para o outro”, não num sentido abstrato, mas no sentido de que o outro é uma audiência, um “público” externo à pessoa que fala: um público muitas vezes simbolizado, no vocativo, como um indivíduo, mas sempre percebido na poesia. Isto se dava porque a poesia criou-se primeiro em sociedade de comunicação oral, as quais tinham também essa “orientação para o outro”.

E é claro que temos muitos exemplos, além de Aristóteles, que demonstram a importância que os gregos davam a esse caráter didático da poesia, como, por exemplo, Platão que no livro X de sua República, em uma fala de Sócrates diz: “esse poeta educou a Hélade e que é digno aprender com ele o que concerne à administração e à educação dos assuntos humanos e viver tendo organizado sua vida conforme esse poeta (606e)”. Mas não precisamos nos manter apenas no plano dos discursos sobre “aqueles que ensinavam”, mas podemos utilizar  formas mais práticas, as “obras” de poetas que agiam exatamente desta forma “educadora”, como por exemplo Calino que em uma de suas Elegias diz o seguinte:

“I

Até quando essa inércia? Quando, ó jovens,

valor tereis? De ignávia, ante os vizinhos,

pois não corais? Dir-se-ia que a paz reina,

não que a esta terra toda a guerra ocupa.

…………………………………………………………

  Morrendo, o bravo atire o último golpe.

Combater pela pátria, esposa e filhos

honra e nobreza traz. Quando o fiarem

as Moiras é que a morte há de colher-te.

Vá, pois, cada um brandindo a lança e, forte

o coração do escudo protegido,

seu posto ocupe ao rebentar da pugna,

já que ninguém do termo certo escapa,

embora seja de Imortais progênie.

O que, fugindo à luta e aos dardos, volta,

muita vez é no lar que o fim depara,

sem que o estime, porém, nem chore o povo.

Mas o estrênuo varão, pobres e ricos,

qual semideus, enquanto vivo, o encaram

e, saudosos, o exício lhe pranteiam,

lembrando-lhes excelsa e rija torre,

pois, sendo um homem só, valeu por muitos.”

Nessa elegia é clara a motivação didática de Calino que, por meio de versos, ensina o valor militar aos jovens, dizendo a eles o quão digno e bem visto é lutar pelo seu povo e a glória que morrer em combate pode trazer. Da mesma forma é vista, na elegia de Tirteu, a educação militar, a exaltação da batalha e a importância da proteção à pátria. Diz o trecho:

“VI

É belo que, lidando pela pátria,

tombe o valente na primeira fila;

mas seu berço deixar e os ricos campos

e, mendigo, ir errar com o pai longevo,

a cara mãe, a esposa e os tenros filhos,

das penas há de ser-lhe esta a mais dura.

Odioso ele será por onde o levem

a penúria e a indigência aborrecida.

Aviltando-lhe a raça e o nobre vulto,

desonra e pecha de covarde o seguem.

Se apreço não lhe dão, mas só desdouro

O êxul depara e quantos dele nascem,

por esta terra com vamor lutemos,

em defesa dos filhos dando a vida.

Cerrando as filas, combatei, mancebos,

deslembrados da fuga e pavor torpe,

e, investindo o inimigo, tende n’alma

desprezo pela vida e heróico assomo.

Não fujais, na corrida atrás deixando

os velhos, cujos membros são mais lerdos.

Pois é vergonha ver-se, antes dos jovens,

jazer, prostrado nas primeiras filas,

um bravo, de alvas cãs, barba grisalha,

exalando, por terra, a nobre vida,

às mãos, nu, tendo os genitais sangrentos:

torpeza e para vista quadro horrendo!

Nada destoa ao moço, ao qual adorna,

brilhante, a flor da juventude amável.

Vivo, olhado é dos mais, caro às mulheres,

e sempre belo, na vanguarda morto.

As plantas, pois, cada um firme no solo,

morda os lábios e, impávido, resita.”

Ambos se utilizam de elegias para exortar os deveres de se batalhar em nome de sua pátria e da glória de se morrer enquanto serve à luta de seu povo, e para alcançar o efeito de exortação de virtudes necessário utilizam os exemplos históricos, como a guerra do Peloponeso na elegia de Tirteu. Mas e depois da concretização da escrita dentro da sociedade grega, como ficou essa cultura do “ensinar pela poesia”? Havelock nos diz: “À medida que, por toda a parte, no mundo grego aumentava a difusão da competência na leitura, com certeza decrescia a necessidade do imperativo de elaborar registros históricos em forma de poesia”, ou seja, a utilização da poesia como forma de registro histórico e forma de educar é inversamente proporcional à difusão da leitura, mas não o suficiente para abolir a prática. Os próprios textos de Aristófanes e Platão demonstram essa essência viva, além do fato de que não se pode deixar de compreender as tragédias ou comédias gregas, por exemplo, como modos alternativos de se suscitar um conhecimento especifico no público (leitor ou não), seja este conhecimento qual for, fazendo com que o grande ganho real da introdução da escrita na Grécia seja, além do simples relato histórico documental, o surgimento de uma ferramenta que facilitou uma literatura mais íntima ao seu autor tornando, a partir daí, a poesia algo mais pessoal do que era antes.
Bibliografia

HAVELOCK, Eric A. “A revolução da escrita na Grécia e suas consequências culturais”. Tradução de Ordep José Serra. Editora Unesp.  p.11 – 39.

Platão. Livro X. A República.

Aristófanes. As Rãs.

Calino. Elegias

Tirteu. Elegias

Sobre o autor: Luiz Fernando Pierotti, nascido no interior de São Paulo, mais precisamente em Tatuí, fez da leitura parte essencial de sua vida. Hoje, vinte e quatro anos depois, descobriu que além de essencial era uma paixão necessária. Morando em São Paulo, é graduando em Letras pela Universidade de São Paulo, onde se habilita no estudo de literatura italiana, o que não lhe impede de se aventurar nos estudos da literatura clássica greco-romana. Tem como grandes ídolos da literatura William Faulkner, John Steinbeck, Ernest Hemingway, entre outros.