Ficção e pescaria foram as primeiras coisas que aprendi com meu pai. As duas ao mesmo tempo, no mesmo dia. Ficção não é o que eu fazia até então pra me livrar das culpas. Um “não fui eu” ou “ele que começou” e ainda “não vi nada”. É acreditar que uma ideia é mais real do que aquilo que está ali sua frente. É fazer seus primos acreditarem que a boneca da Xuxa é amaldiçoada e todos, inclusive você, ficarem acordados com medo durante a noite. Pescaria não é o agrupamento de peixes coloridos e mecânicos no lago de plástico, com olhos vesgos feitos de papel, que abrem e fecham as bocas metalizadas, buscando um imã ligado a uma vara preso por um barbante. É descobrir o que se faz entre lançar a vara e fisgar um tucunaré.

Mentira (e canalhice) é pegar um desses usando rede, subestimando o bicho. É tratar o peixe como se fosse apenas mais um peixe. Ficção é isca artificial. Algo que simula tão bem uma presa nadando que faz o pacu mais esperto do lago largar tudo que está fazendo só para ser o primeiro a abocanhar a sua trama. Na pescaria, existe uma isca certa pra cada resultado e não se fisga tubarão com minhoca. Na ficção, não se fisga desiludidos amorosos com Xico Sá.

Pescaria é saber montar uma vara. Aliás, saber seus tipos e utilidades. Cada estação do ano pede um tipo de boia, colocada precisamente em um ponto da linha para que a isca fique funda o suficiente na água. Colocar a isca pode ser nojento e traumático, especialmente se envolver pequenos animais ainda vivos. Lançar a vara pode travar a coluna, ser desastroso ou humilhante, principalmente se a sua filha de 4 anos estiver assistindo. Depois é preciso jogar guloseimas atrativas para os peixes se alimentarem do seu lado do lago. Vale lembrar que  tudo isso dura questão de minutos para vai saber quantas horas de espera. Às vezes o peixe não aparece, assim como faltam pessoas no teatro, cinema ou comprando seu romance. Pescaria e ficção não têm resultados garantidos, mesmo com guloseimas atrativas no lago ou lançamento.

Ficção não é diversão, mas se faz por ela. Vai falar pra um escritor que virou a noite insone pensando no diálogo da página 36, que o editor falou que estava forçado, que escrever só diversão. Ficção dói. Faz chorar. Mas não vai falar também pra um cineasta que acabou de lançar seu filme que é perda de tempo, que não vale a pena, que é difícil. Ficção é tudo que importa. Passar os seus delírios mentais pras pessoas é uma das coisas mais belas que existem. Na pescaria, dói perder o peixe que você estava brigando por duas horas. A vara quebra. A boia não afunda. O peixe é filho da puta. Mas estamos dispostos a passar por isso. E vamos. E vai ser divertido.

Tem pesque e pague, tem pague e pesque, pesca esportiva e o escambal. Tem best seller, autopublicação, lei de incentivo e promessa de bar. A ficção rola solta depois de uns goles. Tem quem reclame da maré, tem quem reclame do mercado.

Talvez essas imagens ajudem a explicar:

pescaria
Pescaria
ficção
Ficção
Two sockeye dinner Œåäâåäèöà ïîéìàëà 2 íåðêè
Ficção + Pescaria

Algo a se lembrar:  Discovery Channel é ficção. Animais transportados, reservas reservadas. Essas coisas. Big Brother é meio pescaria, meio ficção. Já história de pescador é a mais pura forma de ficção. Eu, por exemplo, vacilei na minha primeira pescaria, nessa que eu aprendi sobre as duas coisas. Enquanto tomava um gole de Fanta e apoiava a vara com meu pé, um pacu de mais de dez quilos puxou a vara pra dentro d’água. Conseguíamos ver a ponta da vara circulando o lago. Ágil, não dava pra acreditar que um peixe poderia nadar naquela velocidade. Ele estava puto da vida. Dava pra ver na forma como ele balançava a vara. Um funcionário do pesqueiro tentou puxá-la e caiu na água. Meu pai foi em seguida, já travado da coluna. Até hoje o peixe nada com a vara, indomável. Mas essa é só a história que eu e meu pai contamos. Você pode colocar nós dois em salas separadas e interrogar, que não vai encontrar detalhe nenhum pra furar o nosso pacto.