Olha eu aqui de novo!
Já tive a oportunidade de comentar sobre esse livro de Ursula K. Le Guin, destacando que mesmo as suas 292 páginas não davam conta do tamanho e da profundidade de sua história. E se nem a obra dá conta de si mesma, o que dirá de um mero texto. Por isso, o alto comando posfaciano decidiu colocá-lo na ciranda de leituras coletivas que estamos realizando desde o começo do ano sob o selo #leiascifi2015. O esquema vocês já devem conhecer: a cada semana, um trecho do livro será discutido por um dos nossos autores, enquanto os comentários dos leitores enriquecem o debate e nós nos preparamos para o encontro final, pessoal e intransferível, assim como já aconteceu com O homem do castelo alto (Phillip K. Dick) e A cidade & a cidade (China Miéville) e que pode ser visto nessas fotos.
A parte que me cabe aqui, à guisa de introdução, vai mais ou menos até a página 75, fim do quinto capítulo, onde boa parte da trama política da história é desenvolvida. Como já tive oportunidade de dizer lá na outra crítica (essa frase talvez se repita ao longo desse texto), a trama da A mão esquerda… se divide em duas grandes partes, sendo a primeira delas mais política e a segunda mais antropológica, em que o universo da história é reduzido a fim de se explorar os detalhes da interação entre os dois protagonistas. Nessa primeira parte, porém, nosso personagem central, Genly Ai, uma espécie de diplomata enviado pelo Ekumen a fim de arregimentar o planeta Inverno (“Gethen”, no idioma “nativo”) a essa liga interplanetária, acaba de pousar em Karhide, o país mais populoso dessa terra inóspita.
O fator dominante da vida getheniana não é o sexo ou qualquer outra coisa humana: é seu ambiente, seu mundo gelado. Aqui, o homem tem um inimigo ainda mais cruel do que ele próprio. (p. 99)
A narrativa tem o formato epistolar, cada capítulo surgindo como um relatório da missão de Genly, quase uma etnografia dos estranhos seres de Inverno/Gethen. Por tratar-se de documentos “oficiais”, não há muito espaço para sentimentalismos ou maior profundidade emocional, criando, assim, um distanciamento pessoal quase tão insuportável quanto o frio desse planeta. Se a intenção da autora era passar essa estranheza alienígena de desbravar um novo território e uma sociedade com cultura e regras distintas, ela bem sucede já pela escolha da narrativa.
Mas se faltasse profundidade à cultura Karhide, a estrutura narrativa de nada valeria. Le Guin não peca aqui tampouco. Pelo contrário, com simplicidade estética, direta, franca e honesta, ela nos apresenta um universo ficcional rico de costumes e estratos, religiões de práticas exóticas (como a Handdara), valores-guia bem estruturados (como o shifgrethor), um sistema numérico peculiar e, o mais importante, um particularismo sexual fundamental à forma como esse povo se organiza.
A androginia é ponto fundamental da obra, característica principal desse povo, choque maior para o visitante alienígena e, em grande medida, motivo pelo qual o livro ficou conhecido no círculo de ficção científica. Seria injusto dizer, porém, que seu único valor está na forma e ousadia de abordar esse assunto em pleno idos de 1969. Embora filha de sua época, a senhora Le Guin sempre mostrou-se muito além de seu tempo (e do nosso também) e sua naturalidade exploradora é tão contagiante quanto as artimanhas infantis.
Quanto à questão sexual, aqui a autora parece fazer um experimento: pegar uma categoria fundamental de nossa estruturação social – divisão binária homem/mulher – e desmembrá-la às últimas consequências, observando as implicações dessa desestruturação. O que sobra é uma sociedade peculiar (mas não impossível), exótica certamente em seus costumes e crenças, mas não completamente dissociável de nossa humanidade. Aqui, Le Guin não parece querer tecer uma tese sobre nada, nem sobre o naturalismo, tampouco sobre o desenvolvimentismo (embora tenha certa pegada ambientalista), mas nos insere numa jornada de observação participante rica o suficiente para que o leitor autônomo consiga desenvolver suas próprias reflexões.
O particularismo dos gethenianos é gerador de uma série de características de organização política e social que não cabem a esta crítica desvendar. De fato, a primeira parte da obra é a mais “agitada”, mais ativa e cheia de acontecimentos, o que pode agradar alguns leitores que, conforme avancem na leitura, venham a desanimar. Como poucos outros livros que já li, A mão esquerda… conta com uma quebra muito definida entre sua primeira e segunda partes, sendo possível até dizer que são dois grandes contos que se passam no mesmo universo temático, mas que têm propostas distintas e formatos que não se encaixam. A terceira parte surge assim como laço que, bem ou mal, amarra essas discrepâncias.
Ainda assim, A mão esquerda da escuridão proporciona um mergulho criativo intenso e excitante e vale o esforço diante da certeza de se ter em mãos uma grande obra literária.
Boa leitura.
Já tinha lido esse livro há muito tempo, havia esquecido quase tudo. Lembrava de algumas cenas mais fortes e do andamento geral da história. Estou gostando agora de ir reparando melhor no mundo, nos costumes, na cultura dos gethenianos, etc. É impressionante a quantidade de material que a Le Guin reúne.
Mas uma coisa em especial que queria entender é: por que os gethenianos não conhecem a guerra? Na introdução a Le Guin dá a entender que isso viria do fato de não existirem sexos definidos, mas não entendo o encadeamento lógico…
Nesse ponto é interessante comparar com o “Ancillary Justice”, em que os personagens “assexuados” são justamente os maiores propulsores da guerra.
Gigio, meu querido!
Obrigado pelo comentário.
Confesso que demorei tanto tempo pra responder, refletindo sobre a questão.
Acho que aquilo que disse de a senhora Ursula ser “filha de seu tempo à mesma medida que sempre esteve muito além de seu tempo” também se aplica aqui: ao mesmo tempo em que ela foi influenciada pela Antropologia estruturalista da época, focada nas “características gerais dos povos” e construtora de diversas associações entre particularismos culturais e formas de vida, ela também parece estar falando aqui das pulsões vitais do psicanálise freudiana (pulsão de vida, pulsão de morte), ao associar libido/sexo/recalque ao impulso de guerra(pulsão de morte).
Digo tudo isso porque a pesquisa qu’eu fiz sobre a autora, apontam para o fato dela ter bebido muito nessas fontes da Antropologia e da Psicologia (além da ideologia anarquista, do ambientalismo, etc). Realmente uma mulher muito plural e complexo, profunda, densa nos conceitos.
Mas enfim, é só uma opinião. Esteja confortável para discordar de mim, ok?
Abraços!