Acho que seria auspicioso iniciar esta resenha sob a sombra daquela famosa frase de Kafka, na qual ele diz que as obras literárias têm de nos atingir como uma tragédia. Confesso que essa frase foi uma espécie de mantra que entoei ao longo de toda a leitura de Um copo de cólera (1978), novela de autoria do brasileiro Raduan Nassar.

A conexão entre a frase e a obra não está restrita a um procedimento pessoal de minha parte, as potencialidades analógicas são mais ricas. Kafka alcançava altas notas escrevendo textos breves, assim como Nassar. Kafka construiu várias de suas histórias de modo a provocar ápices catárticos repentinamente e de maneira fulminante, assim como Nassar. Kafka era um exímio observador do ser humano naquelas facetas obscuras e sombrias, que tanto aterravam os leitores, assim como Nassar. Kafka era um escritor de mão cheia, assim como Nassar.

Eu sei que há diferenças entre o escritor tcheco e o brasileiro em igual ou maior número em que há semelhanças, mas continuo achando que a analogia é válida na medida em que nos permite trazer aportes de interpretação, exegese e fruição da obra de um e de outro.

A história que toma a cena em Um copo de cólera é a de um homem e uma mulher numa manhã após uma noite de amor. Numa casa num cenário rural, ele e ela entregam-se à volúpia e passam uma noite de tórridas relações no pequeno cosmos que se tornou o quarto. Digo cosmos porque diante de tudo aquilo que o cerca, o quarto consegue ser uma espécie de zona neutra, com características e atmosfera sensivelmente distintas de tudo o que se encontra porta afora, sendo capaz, inclusive, de amainar espíritos e corpos, como os próprios protagonistas explicitam muito bem.

Na manhã fatídica, por conta de uma falha na cerca viva que se estende em torno da casa campesina – causada pela voracidade de um grupo de saúvas –, ele explode com o caseiro e a caseira, lançando-lhes impropérios viperinos e dirigindo-se ao galpão em busca do aparelho que lhe permitiria livrar-se por completo das pragas catalisadoras da catarse. Ela, procurando amansar os ânimos do amante, resolve enfrentá-lo, desencadeando por definitivo a torrente verborrágica de insultos, bravatas, ofensas e ataques.

Poucas informações nos são dadas sobre eles. Às vezes tem-se a impressão de que a mulher seja frágil, embora se revele o contrário por sua defesa valente e mesmo ardilosa. Às vezes o homem parece um bronco, mas sua articulação ferina e precisa de impropérios revela uma faceta perversa algo elaborada e perturbadoramente sedutora. Ele parece ser um daqueles sujeitos velha-guarda e linha-dura, algo que não posso passar sem ressonâncias políticas diante da temporalidade da obra: a ditadura brasileira ainda deitava seus sombrios tentáculos sobre a vida brasileira. Ela parece ser afeita às causas sociais, uma jornalista ocupada da denúncia, e sensibilizada pelas desumanidades que espocam aqui e acolá, ainda mais naquela conjuntura em que Nassar viveu e escreveu.

O que sabemos sobre um e outro são aquelas referências casuais que surgem em meio à acalorada discussão que toma lugar no capítulo intitulado “O esporro”. Entre um xingamento e outro, surgem indícios que nos permitem observar algumas facetas que descrevem os personagens para além daquilo que corre em seus espíritos. Essa é, aliás, uma das marcas do livro, pois Nassar conta a história dos dois em grande medida pela exploração psicológica de suas feições internas e espirituais. O esporro é o momento em que essas tendências introspectivas vêm à tona, revelando-se com intensidade rascante.

Os impropérios começam por conta da cerca viva, se estendem por sobre a reação exacerbada dele, continuam em torno da solidariedade dela para com o casal de caseiros, e finalmente desemboca nas diferenças que separam os dois. Aqueles perfis identitários que tentei delinear anteriormente – não com muito sucesso, admito – se tornam o ponto central da refrega verbal, colocando os dois litigantes à beira da agressão física.

Um dos motivos que torna Um copo de cólera um livro tão poderoso é a forma repentina como os eventos se dão, e como o escritor consegue permanecer com uma prosa tão comedida, bela e lapidar apesar de estar falando de uma violência verbal tão enraivecida. Raduan Nassar não perde a mão no seu lirismo encolerizado nem mesmo quando palavrões surgem aqui e ali. A pertinência de cada uma das palavras – antes, durante e depois da contenda – é deliciosa, cada coisa parece estar em seu lugar, e não há excessos apesar do escritor ousar investir e insistir nas ressonâncias e reiterações catárticas de sua narrativa.

Outro desses motivos é a maneira como Nassar nos conduz por seu tour de force ao explorar a cólera como um copo que se toma de uma golada só. Não há preparação e não há bebericadas, se entorna o copo toda de uma golada, com direito a embriaguez, sofreguidão e sede monumentais. Uma vez entornado o copo da cólera, há um estado ébrio de ódio que não deixa pedra sobre pedra, que avassala tudo aquilo que a concórdia parece ter assentado com tanto esmero. A metáfora é engenhosa e profundamente expressiva.

Além disso, há ainda que se falar de como a repentina mudança de humores se dá de uma situação de comunhão carnal transcendente para o vitupério desmedido e explosivo. São linguagens e interlocuções distintas, mas cujas semelhanças são mais surpreendentes que as diferenças. Elas estão entranhadas nas intensidades e nos modos dos interlocutores, insinuadas nos gestos, nos silêncio e nas modulações da voz. O enfrentamento dos corpos se diferencia dos enfrentamentos do verbo, mas guarda uma semelhança perturbadora e fascinante ao mesmo tempo. A novela de Nassar consegue trazer isso à tona e explorar as significações subjacentes a ela, mostrando como o homem é esse misto de carne e espírito, sendo que a dubiedade dos papéis que esses dois “pólos ontológicos” permanece uma incógnita que marca sua existência.

Diante de tudo isso – em menos de cem páginas da prosa de Um copo de cólera – creio que existe uma série de motivos para aventurar-se nas sendas obscuras e intrigantes da obra de Nassar e de sua imagem de homem. Se a tragédia e a fatalidade eram a catarse de Kafka, a cólera é a de Nassar, e isso faz com que não seja possível passar ao largo de severas implicações filosóficas.